Na versão animada de 1937, uma das “Silly Symphony” de Walt Disney, o Rei Midas é um sujeito que assegura não se interessar por mulheres, nem vinho: só acha divino contar uma grande quantidade de dinheiro. A enorme barriga parece contradizê-lo nessa ideia de não ligar aos prazeres da mesa, mas ele insiste na cantoria: «Ouro, ouro, ouro! Eu idolatro-o, eu adoro-o! Ouro, ouro, ouro! Gostava de ter ainda mais, pois nunca se pode ter demasiado ouro reluzente!» Ah, como ele gostava de que tudo aquilo em que tocasse se transformasse em ouro… Dito e feito, eis que surge um duende que diz ter esse poder. Porém, o pequeno ser mágico faz um aviso: o seu dom, em Midas, tornar-se-ia uma maldição. Pois bem, o rei dispensa conselhos ou avisos. Ele só pensa numa coisa: ouro, ouro, ouro!
Nem tudo o que reluz alimenta o estômago
Dotado do toque de ouro, Midas persegue o seu gato para o transformar no metal valioso. E faz o mesmo a flores, fontes, estátuas… Jorram moedas douradas de todos os lados, mas o rei quer mais: «As montanhas, as estrelas, a lua, o céu, um universo de ouro!» É tarefa capaz de cansar qualquer um, e, ao sentar-se à mesa, o seu toque continua a dourar a cadeira, o guardanapo, os talheres e... a comida e a bebida. O dom mostra o seu lado de maldição: o rei não consegue pôr nada na boca sem partir um dente.
«Estará o rei mais rico do mundo destinado a morrer à fome?» O espelho, na imagem de um esqueleto com coroa, mostra-lhe que sim. Desesperado, Midas chama pelo duende e diz-lhe que está disposto a trocar todas as suas posses por uma sandes de hambúrguer.
– Com ou sem cebola? – pergunta o duende.
– Um hambúrguer! – responde o monarca. – Um hambúrguer simples!
Satisfeito com o pedido humilde de Midas, o duende aceita reverter o dom. Depois, o acordo cumpre-se: o castelo fica em ruínas, o manto e a coroa desaparecem. Midas, em roupa interior, regozija com o hambúrguer que lhe surge à frente. Toca-lhe ao de leve… O pão é macio e não duro como o ouro! E, para seu maior contentamento, há ainda uma surpresa: vem com cebola!
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Uma história milenar de deuses gregos e romanos
A lenda do toque de Midas, contudo, é história milenar. Oriunda da mitologia greco-romana, ei-la em versão simplificada. Certo dia, Midas, rei da Frígia, encontra um sátiro que, embriagado, dorme nas suas terras. Reconhecendo-o como Sileno, mestre do deus Dionísio, acolhe-o no seu palácio. Mais tarde, leva-o até ao seu discípulo, o qual, reconhecido pelo gesto, resolve conceder a Midas a concretização de um desejo. Que quer ele? A resposta vem pronta: o poder de transformar em ouro tudo aquilo em que tocasse.
Entusiasmado com o dom recebido, Midas percorre o palácio na febre de tornar tudo em ouro. Apaziguada a ganância, senta-se à mesa para comer e confronta-se com o facto de que as suas mãos também transformam os alimentos e as bebidas em ouro. Para não morrer à fome, resta-lhe implorar ao deus para que este lhe retire o poder do seu toque.
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Bocage e Ovídio de mãos dadas
O conto moral de um rei que cai em desgraça por culpa própria chegou até nós pelo poeta romano Ovídio, que o incluiu nas suas Metamorfoses. Na tradução feita por Bocage a partir do latim, a história apresenta contornos mais densos. Há pastores frígios que capturam o sátiro, festas que duram dez dias, a gratidão de Baco (o deus romano que corresponde ao grego Dionísio) pela restituição do seu mestre Sileno – e imediata consternação pelo teor do pedido de Midas –, a ânsia desvairada de transformar árvores, frutas e até água em ouro. Mas como O ouro mal cobiçado é seu tormento, / É seu justo castigo, Midas, impossibilitado de se alimentar, faz uma prece desesperada. Pede perdão e piedade ao seu deus, e este, benevolente, diz ao rei que bastará banhar-se nas águas do rio Pactolo para se libertar do dom, agora já encarado como ilusório. E assim se lavou Midas da cobiça que quase o matara.
Os deuses são benignos. Baco ao triste,
Que pesa a culpa, que a maldiz, que a chora,
A promessa retrai, e o dom funesto.
A princesa feita estátua e o pato a mergulhar em montanhas de moedas
A partir do clássico da literatura latina, a história de Midas acabou por evoluir para novas versões. Numa, o arrependimento do monarca surge associada à transformação da sua filha em estátua dourada, quando esta, ao ouvir o choro do pai, se aproxima dele para o confortar. É o toque da mão do pai que a condena. Horrorizado, Midas pede então a reversão daquele dom maldito. E, após a lavagem das mãos nas águas do rio Pactolo, o rei volta ao palácio para reencontrar tudo como antes.
Algumas fontes atribuem a introdução da filha nesta história – opção, aliás, bastante eficaz em termos narrativos – ao escritor norte-americano Daniel Hawthorne, já em meados do século XIX. Seja lá obra de quem for, afastamo-nos das fantasias dos deuses omnipotentes para entrar no reino terrestre dos reis e das princesas. E, ao lermos as descrições de que o monarca guardava o seu imenso tesouro numa masmorra fechada a sete chaves, e que todos os dias lá entrava para contar o seu pecúlio, é impossível não nos lembrarmos dos mergulhos do milionário Tio Patinhas nas ondas de moedas douradas da sua caixa-forte.
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Um toque especial que não chegou para liderar os tops
A febre do ouro bem podia levar-nos a outras histórias e paragens. É provável que, um dia, voltemos ao tema do metal reluzente. Por enquanto, para fechar as contas do rei Midas, recuperemos um videoclip de 1986, rodado para a canção «Midas Touch» do grupo Midnight Star. Desta vez, é a mistura sonora de boogie, funk, talvez um pouco de disco, que tem o dom de abrilhantar o cenário: aos poucos, as paredes de tijolo, os andaimes, as escadas, os canos e as mobílias do velho armazém lá vão sendo cobertas com um banho de ouro.
A magia de Midas conseguiu levar a canção até ao número 8 da tabela dos mais tocados. O tema manteve-se pelo Top100 durante dez semanas, antes de cair no quase esquecimento. Não se estranhe. O refrão da canção bem nos alertava que o protagonista queria, mais do que arranjar riqueza, usar o seu toque divino no corpo e na alma da sua querida… Então, dançamos um bocadinho?
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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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