Cultura e Lazer

Maravilhosos trabalhos da era digital

Dois videojogos que nos põem a desempenhar profissões da era digital. E nos alertam que os cenários idílicos podem não ser realistas.

Dois videojogos que nos põem a desempenhar profissões da era digital. E nos alertam que os cenários idílicos podem não ser realistas.

Algumas profissões da chamada Gig Economy, formada pelos negócios baseados em plataformas digitais que fazem a ponte entre trabalhadores freelance e utilizadores, tornaram-se quase omnipresentes nas grandes cidades. Veja-se o exemplo dos estafetas de comida encomendada através de aplicações de telemóvel. Ou dos condutores de TVDE. À partida, a possibilidade de sermos o nosso próprio patrão, de gerirmos horário e folgas conforme a nossa conveniência, é uma perspetiva aliciante. Mas haverá uma visão mais realista da vida – e do rendimento – que se pode esperar deste emprego passado ao volante de um automóvel? É possível sobreviver nesta economia dos gigabytes?

Contas de um homem de família

Ao jogador de The Uber Game pede-se que assuma o papel de homem de família, a viver em São Francisco. Há uma prestação de casa para pagar e dois filhos para alimentar. Também existem dois níveis de dificuldade – fácil e difícil – diretamente ligados ao nível de crédito: se for bom, fica mais barato alugar um carro e é possível viver no centro da cidade; se for mau, a casa já fica a duas horas do local de trabalho… Seja em que geografia for, a corrida contra o tempo começa segunda-feira, logo pela manhã. Primeiro, escolhe-se a viatura em que vamos passar tantas horas sentados e tudo aquilo que nos pareça indispensável à execução das nossas tarefas: um kit de carregador e suporte de telemóvel, licença TVDE, um plano de dados ilimitados, utensílios de limpeza? Se quisermos tudo (e talvez precisemos de tudo…), a conta semanal aumenta.

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Posso mesmo descansar um dia por semana?

Ao volante da viatura, as decisões não ficam mais fáceis. Paramos de trabalhar quando ficamos cansados? Fazemos uma pausa para ir celebrar o aniversário de um amigo? Arranjamos rapidamente o para-brisas rachado? Cumprimos a promessa de ajudar o nosso filho com os trabalhos de casa? «O pai promete que está de volta às 7 da tarde!» E depois, se forem precisas mais umas quantas viagens para atingir o bónus semanal? E, agora, estes clientes que querem comer hambúrgueres dentro do carro! Deixamos que nos sujem os estofos ou dizemos que não, nem pensar, correndo o risco de perder a viagem? Chega sábado, estamos estourados, mas ainda assim temos de optar entre ficar a descansar ou ir trabalhar. É que ainda nos faltam 27 viagens para garantir o bónus...

Videojogo com fundo realista

Baseado em entrevistas e reportagens da redação do Financial Times com condutores de Uber, o videojogo quer evidenciar que o cenário a partir do assento da frente não é tão maravilhoso quanto possa parecer. Para um minijogo, feito de meras opções de “sim ou não”, a sensação de claustrofobia está bem conseguida. Todos os minutos parecem contar; a catástrofe espreita a cada esquina. Basta uma má decisão – aceitar largar um passageiro numa zona proibida e, como recompensa, receber uma multa de estacionamento –, e todo o esforço, todas aquelas centenas de quilómetros nas colinas de São Francisco, vai pela água abaixo. Chega-se ao fim da árdua semana sem se ter dinheiro suficiente para pagar a renda. Aconteceu-nos várias vezes. Acham que conseguem fazer melhor?

The Uber Game

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O melhor é tentar a sorte nas redes sociais!

A prestação da casa obrigou-nos a continuar atrás do volante, mas passámos a dedicar os dias de folga e todas as horas livres a tentar a nossa sorte noutra ocupação que também está na moda: influenciador. Como já tínhamos angariado uns quantos seguidores das redes sociais, à custa das fotografias tontas que publicámos enquanto condutores de TVDE, montámos negócio em Influenc’d. Agora é que vai ser!

A apresentação do videojogo refere que um empreendedor bem-sucedido é alguém que revela mestria na definição das suas metas. Pois bem, se falharmos um objetivo, game over. Mas começa-se com calma, para não assustar: no início, “só” temos de angariar 20 seguidores. Para tal, podemos executar cinco tarefas semanais, escolhidas entre uma lista com várias possibilidades. Que será mais importante: criar um email profissional, partilhar um artigo, comprar seguidores, fazer análise de mercado, responder aos comentários nas redes ou propor uma parceria estratégica a uma marca?

Os milhentos afazeres de um influenciador digital

As escolhas têm impactos diferentes. Umas geram dinheiro, outras exponenciam o sucesso de futuros posts. É importante mantermos debaixo de olho o número de seguidores e o extrato da conta bancária; se não estiverem sempre a subir, ficaremos rapidamente em sarilhos. E, como se não bastasse a aprendizagem sobre isto de ser influenciador digital, ainda temos de contar com percalços típicos da vida real. Mau, não tinham dito que isto era fácil?! Na segunda semana, já nos pedem para escolher entre ir a um evento e tentar conhecer gente importante, criar um post com conteúdo pago, reunir com representantes de uma dada empresa, ir ao banco abrir uma conta, contactar a famosa @maggieB com vista a fazermos uma sessão fotográfica conjunta, enviar a fatura do trabalho já efetuado… Queremos fazer tudo, mas o tempo não estica. E também convém responder acertadamente às perguntas que nos podem dar uns cobres de bónus. «O género, idade, etnia e localização da sua audiência são dados qualitativos ou quantitativos?»

influencd

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Desintoxicação digital seguida do smoothie perfeito

A fasquia vai sempre subindo. Os seguidores passam a medir-se aos milhares; exigem-nos que passemos a dar lucro. Nas partes didáticas, o videojogo relembra-nos que ser um influenciador é como gerir qualquer outro negócio. Sim, é giro sermos o nosso próprio patrão, mas isso exige bastante esforço. «Os melhores empreendedores trabalham no duro, traçam objetivos realistas e mantêm-se organizados.» E quando ficarmos obcecados pelo número de gostos nos nossos posts, pulando ao som das notificações do telemóvel, talvez seja altura de fazermos uma desintoxicação de redes sociais.

Devidamente descansados, voltámos à luta no topo da nossa forma. E bem precisámos dessa energia para lidar com os trolls. «Infelizmente, nem toda a gente que navega na Internet é simpática. Tudo o que pode fazer é denunciar a publicação e seguir em frente.» Mas como não queremos terminar este texto com uma nota ácida, aqui fica uma receita “perfeita” de smoothie providenciada por Influenc’d. A saber: 1 chávena de ananás, ¾ de chávena de morangos, 2 colheres de sopa de manteiga de amêndoa, 1 colherada de baunilha em pó. Fica o aviso: ainda não testámos isto no mundo real; mas no jogo, o batido até deu bons resultados em termos de seguidores e partilhas…

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

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