A bolsa de Tóquio sofreu uma queda épica de mais de 20% em apenas três sessões. O índice Nikkei desvalorizou mais de 12% na segunda-feira, o que representa o pior desempenho diário desde 1987. O “sell off”, caracterizado por uma venda massiva de ações, foi bem mais intenso no Japão, mas atingiu as bolsas de uma forma global, com as praças norte-americanas e europeias a registarem as desvalorizações mais acentuadas em dois anos.
O índice tecnológico Nasdaq 100, que agrupa as maiores tecnológicas norte-americanas, acumula uma desvalorização de mais de 14% face aos máximos históricos de 10 de julho, negociando já em território de correção (queda de mais de 10% face ao pico). O S&P500, índice generalista que agrupa as maiores cotadas norte-americanas, está a recuar 9% face a máximos, o europeu Stoxx600 desvaloriza 7% e o MSCI ACWI (reflete o desempenho das bolsas mundiais) desvaloriza mais de 8%.
Os máximos históricos da maioria dos índices foram atingidos nas primeiras sessões de julho, sendo que, desde então, o sentimento nos mercados agravou-se de uma forma muito pronunciada. Nas últimas três semanas, o valor das cotadas mundiais baixou em mais de 6 biliões de dólares, o que corresponde ao dobro da capitalização bolsista da Apple, que é a cotada mais valiosa do mundo.
A bolsa de Tóquio ainda recuperou fortemente na sessão de terça-feira, com o Nikkei a disparar mais de 10%, mas a forte volatilidade continua a ser a nota dominante nos mercados, o que está a contribuir para afastar os investidores dos ativos de risco. O índice VIX, que mede a volatilidade das ações em Wall Street, deu o maior salto diário de sempre na sessão de segunda-feira, atingindo máximos de quatro anos.
São diversos os fatores que estão a confluir para esta desvalorização acentuada das bolsas. A euforia com o impacto da Inteligência Artificial está a desvanecer, provocando uma correção pronunciada das tecnológicas; os últimos indicadores nos Estados Unidos fizeram regressar os receios de recessão na maior economia do mundo; o Banco do Japão está a inverter a política monetária de forma mais célere do que o antecipado; os resultados empresariais do segundo trimestre estão menos forte do que o aguardado e os eventos geopolíticos contribuem para a aversão ao risco.
Vários destes fatores estão a contribuir para um dos desenvolvimentos que muitos analistas consideram ser a principal justificação para a desvalorização abrupta das ações. O “carry trade”, uma das estratégias mais populares nos mercados nos últimos tempos e muito usual entre os grandes investidores como hedge funds, está a ser revertido com uma elevada velocidade, o que está a causar forte turbulência nos mercados.
Como funciona o “carry trade”
Primeiro é necessário entender o que é o “carry trade”. O conceito é muito fácil de entender, mas as consequências podem ser imprevisíveis, daí que o impacto nos mercados possa ser substancial, tal como está a acontecer nesta altura.
A estratégia de “carry trade” passa por obter financiamento numa moeda com taxas de juro baixas, convertendo o montante noutra moeda com uma taxa de juro mais elevada, que é aplicado em ativos desse país que oferecem uma remuneração potencial mais atrativa. Explicado desta forma, parece “dinheiro fácil”. E, de facto, se os “astros estiveram alinhados”, o potencial de retornos positivos com risco baixo é muito alto, daí que a estratégia seja tão popular nos últimos tempos.
Um exemplo utilizando o iene e o dólar mostra como pode funcionar:
- Um investidor contrai um empréstimo de 5 milhões de ienes numa altura em que a taxa de câmbio está nos 150 ienes por dólares e a taxa de juro do Japão em 0%.
- Converte o financiamento para a moeda norte-americana, aplicando os 33.333 dólares com uma rendibilidade de 5%, o que pressupõe um nível de risco muito reduzido, tendo em conta o atual nível de taxas de juro nos EUA (acima de 5%).
- A carteira, agora avaliada em 35 mil dólares, permite pagar o empréstimo em ienes com lucro. Se a taxa de câmbio ficou estável, o ganho é de 1.667 dólares (250 mil ienes).
- Se a moeda japonesa desvalorizar, o retorno ainda é mais alto. Uma descida para 160 ienes por dólar significa que, quando o investimento é convertido para a dívida nipónica para pagar o empréstimo, a carteira já vale 5,6 milhões de ienes. O ganho é de 600 mil ienes (3.750 dólares).
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O que pode correr mal
Os pressupostos em cima representam o cenário perfeito, mas várias coisas podem correr mal para ameaçar a rendibilidade do “carry trade”. Desde logo a taxa de câmbio. Continuando com o mesmo exemplo, se a divisa japonesa valorizar para 140 ienes, quando a carteira de 35 mil dólares é convertida para ienes, vale apenas 4,9 milhões de ienes, o que já não é suficiente para pagar o empréstimo. O investidor perde dinheiro apesar da aplicação nos ativos ter rendido 5%.
Mas há mais coisas que podem correr mal. Mesmo que a taxa de câmbio da moeda do empréstimo fique estável, ou mesmo no cenário de desvalorização, se a aplicação nos ativos gerar uma rendibilidade negativa, pode ameaçar o retorno do “carry trade”. O exemplo usa como pressuposto a aplicação em títulos mais seguros como obrigações, mas muitos investidores assumem um risco mais alto, optando por ações e outros ativos.
Acresce que a estratégia de “carry trade” só faz sentido quando existe um diferencial significativo nas taxas de juro das moedas onde se obtém o financiamento e onde se aplica o dinheiro. Se for curto, não compensa o risco que está a ser assumido.
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Tempestade perfeita
Ora, nas últimas semanas tudo o que podia correr mal acabou por se concretizar. Na reunião da última quarta-feira, o Banco do Japão deu claras indicações de que vai continuar a subir os juros, abandonando um longo período de taxas negativas ou perto de 0%, o que vai tornar os empréstimos em ienes mais caros. Já o banco central dos Estados Unidos (FED) está mais pressionado a acelerar as descidas de juros, uma vez que a economia está a abrandar, o mercado de trabalho a enfraquecer e a inflação em direção à meta dos 2%.
Além de existir a perspetiva de estreitamento no diferencial de taxas de juro entre o Japão e os Estados Unidos, a política monetária mais agressiva do Banco do Japão e menos restritiva da Fed está a provocar uma valorização expressiva do iene face ao dólar, o que coloca em causa o retorno do “carry trade”.
Depois de um primeiro semestre muito forte nas bolsas globais, as ações recuaram fortemente nas últimas semanas, penalizando o retorno dos investimentos efetuados no “carry trade”. Foi a valorização acentuada do iene e queda abrupta das ações que deu origem a momentos de pânico na sessão de segunda-feira.
Perante esta “tempestade perfeita”, os investidores estão a optar por anularem estas posições de “carry trade”, o que implica vender os ativos e converter a carteira para ienes para liquidar o empréstimo. O que acaba por exacerbar ainda mais a desvalorização das ações e outros ativos, ao mesmo tempo que dá força ao iene face ao dólar. Como o “carry trade” com recurso ao dólar e iene atingiu proporções muito elevadas nos mercados, esta inversão de estratégia tem potencial para causar um “efeito dominó”.
Muitos investidores estão a optar por desfazer o “carry trade” e muitos outros estão a ser forçados a fazê-lo. Isto porque a operação está a gerar prejuízos com uma dimensão que leva os bancos que concederam o empréstimo a pedirem aos investidores um reforço de margem. Ou os investidores depositam dinheiro na conta, ou são obrigados à venda forçada dos ativos.
Além desta ”bomba-relógio” relacionada com o “carry trade”, o aumento de juros do Banco do Japão tem o potencial para um repatriamento de capitais massivo para o país, que tem uma das poupanças mais elevadas do mundo. Durante os largos anos em que a economia nipónica foi penalizada pela deflação, os japoneses colocaram as suas poupanças no exterior, à procura de retornos mais altos e procurando proteção face à perda de valor do iene.
A subida de juros vai colocar as aplicações de baixo risco no Japão em níveis mais apetecíveis, o que pode incentivar o regresso em massa de capitais ao país. A yield (rendibilidade) das obrigações japonesas a 10 anos está em redor de 1%, ainda longe da taxa dos títulos de referência dos EUA (3,8%), mas a diferença está a encurtar. Tendo em conta que o Japão já superou a China como o país que detém o maior volume de títulos de dívida norte-americana, fica bem evidente o perigo de os japoneses venderem em massa os ativos que têm fora do país.
Embora existam muitos fatores que influenciam as bolsas e vários dos fundamentais que suportam a alta das ações permaneçam robustos, as decisões de política monetária da Fed e do Banco do Japão vão ser determinantes para o rumo dos mercados. Apesar de uma parte substancial dos “carry trades” com o iene já terem sido desfeitos, os analistas acreditam que ainda persistem num nível muito elevado.
Embora a correção atual nas bolsas possa ser encarada como um movimento saudável e vista como oportunidade de compra por muitos investidores, a forma turbulenta como está a acontecer pode agravar o pessimismo e acelerar as vendas por impulso. Um cenário sempre perigoso para a estabilidade dos mercados financeiros, caso a volatilidade persiste em níveis elevados.
Existem diversos conteúdos que o leitor pode explorar para adicionar conhecimentos sobre como funciona o “carry trade”:
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How the Yen Carry Trade Blows Up
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Nasceu em 1977, sendo jornalista desde 1999. Iniciou a carreira no Jornal de Negócios, onde esteve mais de 20 anos, ocupando várias funções, sempre com foco no online. Atualmente é jornalista independente, assina a newsletter diária de mercados Morning Call e colabora de forma regular com o ECO. Formado em Gestão no ISEG, tem especial interesse por tudo o que está relacionado com os mercados financeiros.
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