A licença de utilização era um documento obrigatório para confirmação da utilização legal de qualquer edifício em Portugal. Ela confirmava que a construção cumpria todos os requisitos legais e urbanísticos necessários para o fim a que se destinava, seja habitação, comércio, indústria ou outros. Embora a sua necessidade tenha sido alvo de diversas discussões ao longo dos anos, e existam situações específicas em que a sua exigência podia ser mitigada, a realidade é que, na prática, ainda era muitas vezes crucial para a transmissão de imóveis.
A necessidade da licença de utilização para a transmissão de imóveis
Tendo a licença de utilização sido um requisito necessária para a celebração de escrituras de transmissão de imóveis durante décadas, com a aprovação do "Pacote Mais Habitação", em 2023, e, consequentemente do chamado “Simplex Urbanístico”, em 2024, uma das medidas introduzidas mais impactantes foi precisamente a eliminação da exigência da licença de utilização na transmissão de imóveis. A nova legislação tem como objetivo desburocratizar o processo de compra e venda de imóveis, principalmente para os mais antigos.
Marcada por uma pressão (que subsiste) decorrente da necessidade de disponibilização de mais imóveis habitacionais no mercado, a decisão de “aligeirar” os requisitos formais na escritura teve por objetivo simplificar e agilizar o mercado imobiliário, promovendo o acesso à habitação.
Contudo, e ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o facto de deixar de ser exigível a licença de utilização, até porque a figura jurídica da licença de utilização desapareceu do nosso ordenamento jurídico, não significa que tenha sido afastado o processo de controlo prévio, seja na construção seja na atribuição do uso aos imóveis. No que respeita à realização de obras – novas ou que conduzam à alteração do uso, o processo deixa de passar pelo procedimento da licença de utilização, mas, ainda assim, concluída a obra, o construtor deve garantir que o edifício cumpre todas as normas legais, urbanísticas, e de segurança aplicáveis, sendo necessário concluir o procedimento com a entrega do termo de responsabilidade do diretor técnico da obra ou de Fiscalização, acompanhado ou não de telas finais, que atesta conformidade da obra com o projeto previamente aprovado pela Câmara Municipal.
Ou seja, apesar de a licença de utilização ter deixado de existir do ponto de vista legal e, consequentemente, ter deixado de ser requisito necessário e indispensável para a transmissão de um imóvel, continua este a necessitar de passar por inspeções e processos de certificação que garantam o cumprimento das regras urbanísticas, de segurança e construtivas em vigor.
Embora a opinião maioritária entenda que esta mudança de paradigma veio dinamizar o mercado, a verdade é que o “fim da licença de utilização” pode ter causado alguma insegurança que, de certa forma, era conferida pela licença de utilização e, nomeadamente, quanto à legalidade do imóvel, à segurança jurídica e à solidez do investimento, senão vejamos:
- Legalidade do imóvel: Ainda que, como referido, se mantenham requisitos urbanísticos e de certificação, certo é que a licença de utilização comprovava que o imóvel havia sido construído em conformidade com o projeto aprovado pela câmara municipal e que cumpria os requisitos técnicos e legais, incluindo normas de segurança, saúde e habitabilidade, não garantindo, no entanto, a regularidade de eventuais obras posteriores não comunicadas ou regularizadas.
- Segurança jurídica: Ao assegurar que o imóvel possuía a licença de utilização, as partes envolvidas, nomeadamente o comprador, tinham, à partida, a garantia de que o imóvel não teria riscos de irregularidades urbanísticas, o que evitava litígios ou ordens de demolição.
- Solidez do investimento: Um imóvel sem licença de utilização pode ver-se desvalorizado, uma vez que potenciais compradores ou investidores estarão mais reticentes em adquiri-lo.
O que sabemos é que o novo regime, que veio alterar decisivamente a prática de mercado, acabou por ainda não convencer a generalidade das entidades bancárias que financiam aquisição de imóveis sendo poucas aquelas que prescindem de “um qualquer comprovativo” ou de evidência da existência de um processo de licenciamento completo para a atribuição de crédito à aquisição de um imóvel.
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Porque é que a obtenção de financiamento por parte dos bancos ficou mais dificultada com o desaparecimento da licença de utilização?
Mesmo tendo presente as alterações legislativas que levaram à não obrigação de apresentação de licença de utilização no momento de adquirir um imóvel, a generalidade das entidades bancárias continua a entender que a ausência da licença de utilização coloca uma série de riscos legais e financeiros, não apenas para os compradores, mas também para as instituições financeiras. A verdade é que alguns bancos em Portugal continuam a recusar o financiamento de imóveis sem esta licença ou documento comprovativo da regularidade do processo de licenciamento de obra e/ou termo de responsabilidade emitido nos termos acima referidos, com base nas seguintes razões:
- Risco de desvalorização: Imóveis sem licença de utilização enfrentam o risco de desvalorização ou até de medidas compulsórias por partes das câmaras municipais. Este risco desincentiva os bancos a concederem crédito, uma vez que a hipoteca poderá ficar associada a um bem de valor mais incerto ou inferior ao montante concedido.
- Diminuição da liquidez: A ausência de uma licença de utilização pode encerrar em si mesmo uma dificuldade acrescida para a venda de um imóvel já que, quem compra, pode restringir a sua procura a imóveis para os quais tenha sido emitida a licença de utilização.
- Cumprimento de diretivas internas: Algumas instituições financeiras possuem diretivas internas que exigem o cumprimento estrito das normas urbanísticas e legais como requisito para qualquer concessão de crédito, salientando-se o requisito de existência de licença de utilização.
Assim, mesmo que a legislação não impeça tecnicamente a transação de imóveis sem licença de utilização, a prática bancária e as exigências de segurança para o comprador fazem com que muitas transações continuem a depender da obtenção de um qualquer documento administrativo que demonstre o cumprimento da regulamentação aplicável, quer na fase da construção, ou realização de qualquer outra operação urbanística, quer quanto à utilização.
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Miguel Ramos Ascensão, Of Counsel na Antas da Cunha ECIJA & Associados SP RL., com mais de 20 anos de experiência na área Imobiliária onde foi reconhecido, em 2015, pela WWL como um dos advogados de referência em Portugal no direito Imobiliário e na assessoria em transações imobiliárias.
A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.
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