Pensaram que me apanhavam a contar as moedas do mealheiro? Ora, isso é coisa de tempos antigos. Estou entretido a contar o número de zeros à direita nos extratos bancários, a finalizar umas transferências para as Caraíbas, a avaliar a compra do terceiro iate, da quinta casa e do sétimo carro. Acham que me importo com isso dos ditados do povo? Conheço-os todos. «Do alto cai quem alto sobe.» Ainda não caí. E aqueloutro «A cobiça rompe o saco», coisa que António Delicado inscreveu no seu dicionário de lugares-comuns de 1651, e que é outra forma de dizer «Quem tudo quer, tudo perde»? Bem, se o saco for de qualidade, não rompe.
Uma criança que tudo quer
Foi no mesmo sítio que li «Mais vale um pássaro na mão, que dous que vão voando», mas isso é porque ele não teria quem os fosse apanhar. Se puder ter dois, para quê contentar-me apenas com um? Compro dois… ou mil, tanto fez, e escusam de me tentar fazer sentir mal. «Não é pobre o que tem pouco, mas o que muito cobiça», apregoa-se na Coleção de Provérbios, Adágios, Rifãos, Anexins, Sentenças Morais e Idiotismos da Lingoa Portugueza, de 1848, mas soa a coisa inventada por quem tem pouco. E não quero com isto dizer que o povo não acerte, às vezes. Aliás, acho-o cheio de razão naquilo de «Quem mais tem, mais deseja», que também aparece na forma «Quem mais tem, mais quer».
Ouçam, vou confessar-vos que, por vezes, sinto-me um menino. «O coração é uma criança, deseja tudo o que vê», dizem, e não posso negar que desejo e quero tudo. E não acredito na máxima que determina que «De uma vaca não se podem tirar duas peles», nem me julgo tolo por rir-me do anexim «Louco é quem quer o que não pode haver». Se não existir uma coisa, mando inventar. Só não me metam em «Muita marmelada por pouco dinheiro», que não sou parvo. Isso não.
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Palavras de que gosto: ambição, ouro, ganhar…
Os provérbios bem avisam que «Mau é ter os olhos maiores que a barriga», mas o meu estômago ainda consegue inchar mais. Tenho muita «sede de ouro», que Paulo Perestrello da Câmara, na tal coleção de “Idiotismos da Lingoa Portugueza”, descreve como “cobiça, grande desejo, ambição, anhelo” (sendo esta uma palavra espanhola que significa ânsia). Reconheço a minha ansiedade por mais e mais. Os outros que fiquem por inteiro com o lema «Tem mais aquele que menos deseja», que eu prefiro viver sob o auspício de outro: «Temos muito, falta-nos muito.»
Se fosse a vocês, desistia de me tentarem colocar pesos na consciência. Nisso de pesagens, só conheço a da soma dos meus lingotes de ouro. E eu sei bem que todos esses ditados populares, no fundo, devem ser inveja. «Quem desdenha, quer comprar», não é o que se diz? Querem, portanto, saber como se enriquece. Temos pena. Toda a gente sabe que «O segredo é a alma do negócio», mas, ainda assim, hoje sinto-me magnânimo e vou dar-vos uma dica. Fiquem de olho nos meninos riquinhos… «Compra a quem herdou, que não sabe o que custou.»
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Palavras de que desgosto: perder, modesto, pouco…
Pronto, vá, sinto-me generoso, aí vai nova dica: «Mais vale um toma que dois te darei», que é o mesmo daquela coisa dos pássaros na mão. O dicionário do Reader's Digest, até acrescenta um descritivo: «Ensina este provérbio que não se deve trocar uma vantagem real, ainda que modesta, por outra que, parecendo duas vezes maior, não é tão segura, ou não passa de simples hipótese.» Lê-se também que existe outra variante, «Antes um pardal na mão do que uma perdiz a voar», mas eu já tinha ficado enjoado com aquilo da vantagem “modesta”, além de que, no meu prato, obviamente, só de perdiz para cima.
Acham que me fui contradizendo? Isso era se acreditasse numa ideia que fosse disso dos provérbios populares. «Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem», e tal, certo, está bem. Ou então errado, totalmente errado. Bem sei que, face à minha resistência, estão a preparar os vossos argumentos finais. Vão começar de mansinho, com o livro do Francisco Roland, a alinhavar o «Por cobiça de florim, não te cases com ruim» (eu casei-me com alguém de família com fortuna igual à minha, que interessa o resto?), o «Quem por cobiça veio a ser rico, corre mais perigo» (mas como, se vivo permanentemente rodeado de câmaras de vigilância e seguranças, se não me misturo com o povo…), ou o «Muita cobiça, e muita diligência, pouca vergonha, e pouca consciência». Eu cá não tenho nada que seja “pouco”; até é palavra que me arrepia.
De que serve a sabedoria?
Declaram-se vencidos ou ainda têm mais ditados para a troca? Já sei, aí vem o pimpão do Conselheiro Rodrigues de Bastos para tentar convencer-me com algumas das frases que compilou – ou inventou? – na sua Coleção de Pensamentos, Máximas e Provérbios. Talvez essas coisas funcionassem lá em 1847, mas agora? Se ele me disser «A cobiça não deixa aspirar a nada de nobre nem de grande; é uma paixão baixa e incapaz de elevar-se a tal altura», eu respondo-lhe que, se quiser subir aos céus, vou de jato privado. Se ele me avisar que «A cobiça do rico é uma miséria factícia», obriga-me a ir à enciclopédia para descobrir que essa tal “ideia factícia” vem da filosofia de Descartes; hum, será que consigo inventar um mecanismo de plágio que me valha mais uns cobres?
Mas, sabem, algures terei de concordar com o conselheiro. Escolho esta: «O ouro e a prata não podem saciar a sede das riquezas; a cobiça, por mais que adquira, não é nunca satisfeita.» Nisso tem toda a razão. Nunca estou satisfeito com o que tenho. Já vos disse que quero mais, sempre mais, muito mais? «O sábio precisa de pouco, porque não cobiça muito», tenta ele rebater. Mas eu não nunca falei em sabedoria; só disse que queria mais. E continuo a querer.
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