Cultura e Lazer

Eu sou famoso, eu sou famoso, eu sou famoso

Os tempos mudam, os provérbios ficam. Nalguns casos, a sabedoria popular talvez se mostre desatualizada. Será o caso da fama, nesta era de influenciadores?

Os tempos mudam, os provérbios ficam. Nalguns casos, a sabedoria popular talvez se mostre desatualizada. Será o caso da fama, nesta era de influenciadores?

Ainda se conhecem alguns utilizadores frequentes do provérbio clássico "gaba-te cesto, que logo vais à vindima". Por vezes, ouvimo-lo em versão diferente. Por exemplo, se recuarmos uns séculos até 1651, aos “Adágios Portugueses reduzidos a Lugares Comuns” de António Delicado, encontramos outra ideia sobre o mesmo cesto gabarolas: "Gaba-te cesto, que vender te quero."

A vindima por fazer ou o cesto por vender são formas de dizer que o pior ainda está por vir; por isso, talvez fosse ajuizado algum comedimento nisso de nos acharmos os maiores. Ainda assim, na era dos influenciadores digitais, os números de seguidores é que contam. Quando se tem muitos, é preciso apregoá-lo ao mundo. E pouco importam os avisos antiquados da voz do povo.

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Sucesso autoproclamado

Entremos no museu dos provérbios que nos falam da fama, que aqui encaramos no sentido de se ser conhecido por milhares ou milhões de pessoas. Se dissermos a um influenciador "julga-se sempre o lobo maior do que ele é", ele responde logo com o número de seguidores. Se avançarmos que "ninguém é bom juiz em causa própria", pois ele defende-se que nem é ele que se acha o máximo (às vezes até é), mas sim os seus seguidores. Cansados da conversa dos seguidores, os dicionários de provérbios contrapõem: "Mais são as vozes que as nozes", que é como quem diz, é mais a fama do que a realidade. Batalha ganha? Longe disso.

Isto de fortalecer o ego, e ganhar o jogo das audiências nas redes sociais, ganhou regras muito próprias. Vejam lá se estes provérbios não soam um bocadinho desfasados da nossa era:

  • "Louvor em boca própria é vitupério."
  • "Louvor humano é puro engano."
  • "Não pede louvor quem o merece."
  • "O amor próprio é o maior inimigo da verdade."

Mas como é que aquele tipo ficou na berra?

Será sempre uma questão de prisma achar-se que alguns ditados ainda fazem sentido ou não. Às vezes, até parece que "todos falam e murmuram, e ninguém olha para si". Um olhar profundo e não superficial. Os seguidores são incríveis para o reforço da autoestima; mas, para a sabedoria popular, eles apenas fazem eco uns dos outros. "Unge-te de mel e serás coberto de moscas." Os zunzuns das moscas repetem-se, perpetuam-se. Como se a própria fama criasse mais fama; como se as moscas andassem umas atrás das outras.

Às vezes, este sucesso público aparece sem se saber bem como ou porquê. "Mais vale cair em graça, do que ser engraçado", afirma uma máxima que se mantém atual. Mas pronto, aceitemos que alguém ficou conhecido, por esta ou aquela razão. É o rapaz que passou a "andar na berra", rifão já listado em 1841 por Francisco Roland; é a moça que anda a "dar brado", que o mesmo dicionário define como "fazer grande sensação, granjear celebridade". Mas atenção, que para os antigos "andar nas bocas do mundo" era ser mal-afamado e não algo de positivo. Tal como a "fama sem proveito, faz mal ao peito".

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Ficar no topo é capaz de dar trabalho

A fama, atualmente, mais parece uma mercadoria que pode sempre ser capitalizada. No fundo, tanto faz se é boa ou má, desde que se chegue a milhares ou milhões. Na sua coleção de pensamentos, o conselheiro Rodrigues de Bastos incitava a uma sondagem: "Interrogai os homens mais célebres; e eles vos dirão que a fama não é a felicidade." Mas apetece perguntar ao conselheiro se essa estatística estará atualizada…

Convenhamos que atingir a fama possa ser mais difícil do que parece. Talvez requeira esforço e sorte; e, se o meio em causa o requisitar, ter talento poderá ser uma ajuda. Para uns lá chegarem, muitos falharam e ficaram na sombra. Pois bem, para quem alcançou o patamar da fama, não faltam avisos populares. Um anexim adverte que não se pode "fazer avença com o tempo", ou seja, a pessoa não pode acomodar-se aos sucessos, não deve contemporizar. E que não se preguice demasiado de manhã… Em tempos, levantar cedo era algo bem visto: "Se queres ter boa fama, não te tome o sol na cama." Mais uma vez, os tempos são outros e há gente que se move, com imenso sucesso, pela noite fora.

Está-se tão bem na caminha…

Enfim, seja de dia ou de noite, o melhor é não descansar à sombra da bananeira. Quem o fizer pode estar a pôr-se a jeito. "Hoje louvado, amanhã desprezado." É que, como o Conselheiro nos avisa, "a fama é filha da fortuna; e não é menos inconstante, nem menos caprichosa".

E depois, sorrateiramente, ainda inclui nas suas páginas um adágio que quer aplicar-se, como uma advertência, ao autor deste texto: "Quando uma vez as cem trombetas da fama tem celebrado o nome de um autor, ele perde o sossego; e por mais que o procure, não o torna a alcançar."

Caro Conselheiro: mas quais cem trombetas? Aliás, isso é instrumento desta era?! Deixe lá vir primeiro o autor celebrado, que eu depois digo-lhe se perder o sossego é uma coisa assim tão terrível. Isso desde que não tenha de fazer grandes esforços matinais, claro, ou lives para as redes sociais, ou um vídeo com uma cena estúpida e perigosa que dê milhões de visualizações e que ilustre bem um último ditado: "afrontar a morte para ficar na história, é baratear a vida por um pingo de tinta".         

Vendo bem, isto da fama dá mesmo muito trabalho. Olhe, Conselheiro, se calhar umas dez trombetas são capazes de chegar.

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.

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