2020 foi um ano de mudança de hábitos, essencialmente devido à pandemia. O recurso ao digital deu mais uns passos e as fintechs estão no centro da inovação. O relatório Portugal Fintech 2020 demonstra um crescimento deste universo, com capacidade de se financiar e atrair valor.
O Doutor Finanças é uma das empresas que consta no top 30 do Portugal Fintech Report 2020. A propósito da divulgação deste relatório, o Doutor Finanças colocou questões a alguns líderes de fintechs em Portugal. Quais são os desafios que este ecossistema enfrenta? Que impactos teve a pandemia nas fintechs? Estas são algumas das questões colocadas a João Saleiro, CTO do Doutor Finanças, que partilhou a sua visão deste universo.
Quais são os principais desafios de uma fintech em Portugal?
Não posso falar por todas as fintechs em Portugal, mas posso falar no caso específico do Doutor Finanças. Identifico três grandes desafios: os gaps culturais e tecnológicos dos incumbentes (bancos); a escassez de API de serviços públicos essenciais ao funcionamento eficaz do sector; e a competição por talento.
No que toca ao primeiro ponto, os incumbentes nem sempre compreendem a tecnologia, o que cria alguns gaps de comunicação. Coisas tão simples como partilhar com um banco links para lhes dar acesso a dados necessita de passar pela aprovação dos departamentos de legal, compliance e IT, entre outros. E esta aprovação nem sempre é linear, sendo levantadas questões muitas vezes desenquadradas. A banca tradicional joga (e bem) pelo seguro, preferindo preservar aquilo que 'já funciona'. Uma fintech tipicamente vem melhorar o status-quo alterando o que 'já funciona' para que funcione melhor. O que faz com que seja inevitável o choque cultural com a banca tradicional. Isto foi algo que melhorou muito nos últimos anos, em especial com os avanços da diretiva europeia PSD2 que forçou uma abertura de mentalidade e a atualização tecnológica dos incumbentes. Mas há ainda um longo caminho a percorrer.
Relativamente ao segundo ponto (escassez de API), temos em Portugal vários serviços que, por não disponibilizarem API, criam dor no cliente, dificultam todos os envolvidos, e atrasam muito a digitalização de determinados processos. Exemplificando, num processo de aprovação de crédito o cliente necessita de recolher vários documentos, como o mapa de responsabilidades de crédito (através da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal), a declaração de IRS no Portal das Finanças, ou os recibos de vencimento (que podiam ser acedidos diretamente a partir da Segurança Social). O cliente tipicamente não sabe como obter estes dados, e perde muito tempo em todo o processo. Se estes serviços disponibilizassem API que permitissem ao cliente autorizar a partilha de dados com um terceiro (via OAUTH ou algo semelhante), o problema ficaria resolvido com dois ou três cliques, no espaço de segundos, e com uma experiência muito mais positiva para o cliente.
Por último, a competição por talento está ao rubro, o que é uma excelente notícia. Somos um país com talento altamente qualificado, e hoje em dia é habitual vermos empresas internacionais à procura de talento em Portugal, ou mesmo a sediarem-se cá. Isto cria desafios a qualquer startup que esteja a arrancar, porque terá dificuldades em competir pelo talento que se tornou escasso para tanta procura. Atualmente é normal encontrarmos alunos de Engenharias que no último ano do seu curso já estão a ser remunerados por uma qualquer tecnológica, que encontrou essa forma de "reservar" talento para si. Isto é fantástico para o mercado, mas cria imensos desafios para quem está a lançar a sua fintech e precisa de recrutar.
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Que impacto estimam que a pandemia possa ter no universo das fintechs?
Existe uma perceção generalizada de que a pandemia veio acelerar a digitalização de um conjunto de processos que só eram possíveis presencialmente. Vemos os clientes a procurarem alternativas à deslocação aos serviços presenciais, o que faz com que quem oferece uma melhor experiência online acabe por estar mais bem capacitado para 'este novo mundo'.
A pandemia acelerou o processo de digitalização uma vez que forçou a adoção de novos comportamentos mais digitais. As pessoas viram-se obrigadas a experimentar este tipo de serviços e perceberam que podem trazer vantagens e comodidades acrescidas. Por falta de alternativa muitas delas venceram até alguns dos receios e dificuldades que podiam ter na adoção de comportamentos digitais, por exemplo, por questões ligadas ao baixo grau de literacia digital.
As fintechs costumam estar bem posicionadas, pois nascem com uma ótica "digital-first". Com a pandemia, temos assistido a uma mudança de postura dos incumbentes que passaram a mostrar mais disponibilidade para trabalhar em conjunto com fintechs. Por exemplo, este ano estamos a assistir a vários bancos a lançarem a abertura de conta digital tirando partido de serviços fornecidos por fintechs como a LOQR, uma startup portuguesa.
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A regulamentação é desajustada em Portugal? O que consideram ser necessário nesta área?
Em vez de desajustada, prefiro usar o termo desatualizada. O mundo da tecnologia avança muito rápido, e a cada nova inovação são destruídos paradigmas antigos e introduzidos novos paradigmas. A regulamentação tem dificuldade em acompanhar (e perceber) esta evolução, e muitas vezes acaba por funcionar como bloqueio à inovação. Quem perde é o cliente final, que hoje procura processos mais ágeis e rápidos. A regulamentação procura (e bem) proteger o cliente, e a experiência do cliente também devia fazer parte dessa proteção. Por exemplo, ao dia de hoje a regulação já deveria prever mecanismos para realizar escrituras de crédito hipotecário à distância.
Mesmo a regulamentação sobre temas não tecnológicos consegue ser bloqueio à Inovação. Por exemplo, a criação de legislação sobre portabilidade de avaliações a imóveis poderia revolucionar completamente o sector do imobiliário e Crédito à Habitação, permitindo a aprovação do crédito no próprio dia.
Ao dia de hoje, os bancos não aceitam avaliações certificadas recentes, o que leva a que o cliente tenha que passar por um processo de pré-aprovação, abertura de conta, pedido de avaliação e avaliação final, até ter na sua posse a aprovação propriamente dita. São vários dias de demora até o cliente saber se tem o financiamento aprovado, dias esses com muita carga emocional e ansiedade. E se o cliente quiser negociar com outro banco, tem de repetir novamente a avaliação ao imóvel, pagando e aguardando novamente por toda a análise desse banco.
Este problema poderia ter ficado resolvido no projeto de lei de portabilidade da avaliação (624/XIII), que chegou ao Parlamento e lá ficou. Esta simples alteração na lei iria provocar um shift absoluto no mercado. As avaliações passariam a funcionar um pouco como os certificados energéticos: seria apenas mais um documento a obter antes do pedido de crédito. As imobiliárias e os próprios clientes passariam a pedir avaliações antes do pedido de financiamento e passaríamos a poder pensar em aprovação de crédito à habitação no próprio dia, visto que o cliente quando pede o crédito já teria em sua posse toda a informação que o banco precisa para fazer a análise imediata do financiamento, por via digital. Ou seja, esta ligeira alteração na legislação a proteger o consumidor poderia desbloquear a aprovação de crédito à habitação no próprio dia, por via digital.
É mais difícil ser uma fintech em Portugal do que noutros países, nomeadamente europeus?
Não tenho informação para responder a esta pergunta. Apesar de cada país ter os seus desafios particulares, sinto que a nível europeu os desafios serão mais ou menos equilibrados. Com alguma vantagem para o Reino Unido, que tem muita massa crítica devido ao seu ecossistema de fintechs muito rico.
Quais serão os 3 principais desafios para os próximos cinco anos para as fintechs?
Não lhes posso chamar os principais desafios, mas os que me ocorrem são:
- Conseguir prever as tendências e ir "surfando a onda" de transformação do setor, com adaptação ágil a uma realidade em constante mudança. Irão vingar as fintechs que conseguirem prever melhor o dia de amanhã, enquanto se adaptam constantemente às necessidades do dia de hoje.
- Reconhecer o papel dos incumbentes e aprender a trabalhar com eles. A maioria dos incumbentes vai adaptar-se e saber responder à transformação do sector. Acredito que iremos começar a ver bancos a adquirir fintechs, e com elas começar a prestar serviços bancários em marcas que criam “ao lado”, para não sofrerem com o seu legacy. Isto permite-lhes juntar a tecnologia ao seu maior ativo: a experiência de mercado. Por exemplo, a CGD (Caixa Geral de Depósitos) foi fundada em 1876. São quase 150 anos de experiência e de conhecimento do mercado. Quando os incumbentes forem capazes de juntar tecnologia ao seu conhecimento e experiência, ficarão com uma vantagem competitiva que vai criar desafios às fintechs menos preparadas para esta possibilidade.
- A competição internacional, em especial dos gigantes da Internet. Hoje em dia, as fronteiras são cada vez mais esbatidas, sendo sobretudo fronteiras linguísticas e culturais, somadas a alguma regulamentação local. Mesmo esta regulamentação está tendencialmente a convergir nos países da UE. Em breve iremos ver um grande número de fintechs internacionais a oferecer serviços para quase toda a Europa, e provavelmente veremos no meio nomes como o Google ou o próprio Facebook a prestar serviços de carteira digital, ou mesmo de crédito.
3 conselhos para quem está a pensar em lançar uma fintech
Os conselhos não são específicos para as fintechs, mas para qualquer startup:
- Não deixar que a tecnologia retire o foco no problema a resolver. O problema que a fintech se propõe resolver tem de ser muito claro e a fintech tem de ser excecional na execução da solução para esse problema. Atualmente, ter uma boa ideia já não chega. Temos de procurar problemas da sociedade, e ser capazes de criar soluções excecionais para esses problemas.
- Não correr atrás da monetização. O drive dos fundadores tem de ser a solução para o problema, e não a busca por "riqueza". O mercado tendencialmente recompensa quem cria valor, por isso o foco dos fundadores tem de estar na criação de valor. Quem se distrai com a ideia de enriquecer tem mais dificuldade em focar-se na criação de valor.
- Ser resiliente e procurar ativamente aprender com os conselhos e erros dos outros. Uma startup que "vence" é uma startup que conseguiu sobreviver a todos os erros que cometeu no seu processo de construção. Logo é vital uma resiliência enorme aliada à capacidade de procurar aprender ativamente com os outros para não se repetirem os erros dos outros. Sugiro vivamente a quem pensa lançar uma fintech juntar-se a um hub de talento (ex: Fintech House; outra fintech/startup já com escala) onde possa trocar ideias, fazer perguntas, e aprender com os outros. O erro faz parte do crescimento, e crescemos mais rápido se tivermos a capacidade de não repetir os erros dos outros que passaram pelo mesmo processo.
(Conteúdo atualizado no dia 23 de novembro, acrescentando informação na resposta à questão sobre a regulamentação)
A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.
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