O dramaturgo irlandês, também cofundador da London School of Economics, Bernard Shaw (1856-1950), disse que na vida há duas catástrofes: «a primeira, quando não vemos os nossos desejos realizados de nenhuma forma; a segunda, quando se realizam completamente». Planear a viagem não tem só a ver com o destino, sabemos. Tem, provavelmente, muito mais a ver com o caminho e os caminhos dentro do caminho. Tem a ver com a nossa condição natural peregrinante. A descoberta do sentido do que somos e do que queremos fazer com o que somos.
No evento anual da PWN Lisbon deste ano (ocorrido no dia 29 de novembro de 2023) – num ano em que esta organização vocacionada para a liderança assinala 12 anos de atividade e em que verificou o maior crescimento de sempre do seu universo de membros registados, atualmente mais de 1700 –, celebrou-se a diversidade como pilar estratégico da sustentabilidade das organizações, num olhar transversal ao ciclo de vida, ao das organizações e ao nosso próprio ciclo de vida, que nos seus diferentes estádios de desenvolvimento e maturidade nos vai evocando a descoberta de um propósito, de um sentido, de uma missão; num apelo à vocação e ao talento, que não são exatamente iguais.
Clarice Lispector, escritora brasileira incontornável no século XX, incorrigivelmente atual, tem o pensamento que melhor resume (não encontrei melhor até hoje) a diferença entre os dois: «Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir». Há que dotar a vocação de direção e intencionalidade. Aquele território de singularidade a partir do qual deixamos uma marca absolutamente única e, desse modo, um contributo para a diversidade de que é premente falarmos hoje.
Ser referência na construção da liderança (diversa)
Reforço o propósito da PWN Lisbon: ser referência na construção e consolidação da liderança, numa visão inclusiva, assente nos critérios da diversidade, equidade e igualdade e procurando o desenvolvimento da pessoa numa perspetiva integral, ao longo da vida. Apesar de estar sempre implícita essa motivação, aliás essa inegável necessidade, não é de empoderamento de mulheres que falamos. Mas de uma preparação para liderar e gerar novos líderes.
Agora, todas as fontes nos traduzem as discrepâncias, é certo. Ainda há dias o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (BCSD Portugal), no estudo “Diversidade, Equidade e Inclusão no meio empresarial português”, elaborado em parceria com a Ernst & Young, evidenciou: «quanto mais alto o cargo, menor é a prevalência de mulheres, que, ao longo da carreira, são menos promovidas do que os homens e com salários aquém». A laureada deste ano com o Prémio Nobel de Economia, Claudia Goldin, vai inclusive mais longe e centra a sua investigação na evolução não linear (vamos dizer assim) da situação económica (que não tem só a ver com salários) dos homens e das mulheres.
Conhecemos estes números e sabemos, até, que nos faltam mais de uma centena de anos para colmatar a disparidade global entre mulheres e homens. Além de que «basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam postos em causa», como reforçou Simone de Beauvoir. Não deixa de ser curioso, ainda assim, olhando para um outro estudo, o Global Female Leaders Outlook, desenvolvido pela KPMG junto de aproximadamente 850 mulheres de 53 países, incluindo Portugal, que cerca de 60% das líderes portuguesas acredita que, no máximo, nos próximos 10 anos, haverá igualdade de género na administração das empresas, e 91% concorda que o escrutínio em volta deste tema continuará a aumentar.
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Falar de diversidade organizacional (que é governance)
Ora, falar de diversidade organizacional – que pressupõe falar, não vale a pena escamotear, de governance – implica, infelizmente, ainda hoje, falar das mulheres enquanto género sub-representado nos principais lugares de decisão. Mesmo que as mulheres, diz-nos o Pew Research Center, se destaquem em vários fatores decisivos da liderança corporativa, como a valorização e integração de pessoas oriundas de diferentes backgrounds, a consideração do impacto social das decisões de negócio, a mentoria e o cuidado com colaboradores mais jovens ou o sentido de justiça face às condições e ao estatuto remuneratório. Está, de resto, amplamente provado que organizações com lideranças mais diversas alcançam resultados e situações financeiras mais robustas e sustentáveis.
Registar, em bom rigor, que Portugal tem feito um progresso notável neste campo e estamos convictos de que a PWN Lisbon tem ao longo de 12 anos vindo a contribuir ativamente para o efeito, embora não seja, claro, a única força a mover-se nesta frente. E ainda bem! O que podemos e devemos, pois, é focar-nos naquilo que podemos melhorar. Porque este é o tempo de uma maior ambição para a diversidade, a qual depende em grande medida das lideranças. É do desenvolvimento das pessoas mediante uma visão assente em referenciais de ética, competência, talento e propósito que falamos. Mas voltemos à viagem de vida.
Jornada(s) de vida (com propósito)
Para a célebre pergunta com a qual somos confrontados – o que queres ser quando fores grande? – temos não raras vezes resposta pronta, previsível, intuída. Não nos perguntaram tanto, porventura nem sequer nos chegaram a fazer a pergunta: «O que é que te apaixona?». Fizeram? Aqui está tantas vezes a chave de interpretação do nosso talento. E é por isso tão simultaneamente fundamental que nos deem “nãos”, claro, que fazem parte de parâmetros de educação; e “sins” que nos liguem ao mistério da nossa própria vida, àquele tal território de originalidade e singularidade que ninguém, absolutamente ninguém, poderá reproduzir. Aquele espaço de descoberta de quem somos, de onde vimos, para onde queremos seguir. Com que finalidade. Não com que fim, mas com que finalidade. Com que intencionalidade. Com que propósito. E é aqui, neste campo específico, que José Tolentino Mendonça nos diz «trazermos por viver ainda uma infância». Porque há perguntas que podem e devem ser renovadas e respostas que devem e podem estar lá atrás. E «precisamos reencontrar o espanto». Porque, afinal, e cito de novo Tolentino, isto «não pode ser só isto».
Ultrapassado o tempo escolar, surge organicamente como o nascer e o por do sol a juventude, esse tempo em que temos o futuro provisoriamente inteiro nas mãos. Aqui, o pensamento vai-se formando e dentro de uma arquitetura de valores que trazemos de trás vai-se apropriando de sentido crítico. E até podemos fazer tudo muito bem feito. Podemos ser os melhores alunos. Até podemos, como se isso interessasse ou fosse possível, ser perfeitos. Mas talvez a vida nos peça (muito) mais do que isso. Pede-nos mais do que o excesso de zelo. Pede-nos em excesso a relação com o outro, a empatia, a integração, o sentido de pertença. É nessa filigrana que descobrimos os alicerces da diferença que podemos deixar. A desconstrução que devemos ambicionar experimentar, numa evolução do organograma arrumado e da máquina oleada, mas sem horizonte, para a exploração inexcedível de todos os nossos papéis e funções com um horizonte de finalidade e sentido. Foi esse edifício inteiro que vi na Mafalda, cuja partilha de vida recebemos hoje pela sábia condução do João Pedro. Dizia-nos o Papa Francisco, neste ano em que acolhemos em Lisboa a Jornada Mundial da Juventude, que ao lado dos jovens não se envelhece, porque eles são o futuro.
Mas que futuro? Se a História tem a integridade cívica de tornar esse futuro menos surpreendente, seremos consensuais sobre a falta de distanciamento que temos sobre este século XXI que chegou com promessas de entusiasmo e esperança, para lá da «era dos extremos» que o historiador Eric Hobsbawm atribuiu ao século XX. E o tempo voou, o tempo voa sem referências firmes. A variabilidade do presente, aliás, é uma espécie de acelerador de partículas. Temos todos com certeza a perceção de que os últimos três anos foram mais vertiginosos do que os últimos dez, os últimos 50, 100, 200, 500, porque as muitas e muitas partículas de que o presente se faz gravitam em torno de um caos a exigir estabilidade e arrumação urgentes. E isso tem impacto na organização que somos, no país que temos, na sociedade em que vivemos. E não deixa de ser curioso que o presente, ao invés de reconhecer que nada ou pouco sabe, vive de presumidas certezas e autoalimenta-se de respostas prontas a servir, sem sequer imaginar as perguntas criativas que poderiam ser feitas.
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O legado e o que legar
Aqui, entra o legado do passado nessa ligação imprescindível com o presente e com o futuro, nessa construção do ciclo de vida que é o nosso, o da nossa organização, o do nosso país. O da Humanidade. Nos textos fundadores do que todos somos, como os poemas homéricos ou a Eneida, de Virgilio, já lá estava tudo. Já lá estávamos todos. Ao fornecer enraizamento histórico e contextual, ao identificar raízes, bons e maus modelos, a História – leia-se, a experiência – pode e deve ser um decantador do presente. O estudo, o silêncio, a reflexão, o conhecimento com responsabilidade, o autoconhecimento, a arte de perguntar, a prudência, mas também a irreverência, a humildade, mas também o risco de ir… dão-nos os alicerces para esta aventura muito diversa, porque muito humana, que a vida é. Com todas as ferramentas que esse horizonte da passagem do tempo nos dá sobre o que herdámos e o que deixaremos para herança.
É esta visão de helicóptero sobre a linearidade do tempo – este estar acima do próprio tempo – que nos chama para a razão de ser e a inevitabilidade da sustentabilidade. Olhemos para o que somos e para o sentido da nossa vida a partir desta noção de sustentabilidade, com diálogos intergeracionais (com todos, os Baby Boomers, a Geração X, a Geração Y ou os Millennials e a Geração Z), com laços entre culturas, com a tecnologia, a Inteligência Artificial, a relação com o outro. E essa relação com o outro não pressupõe estar ao espelho para nos enfatizarmos refletidos; é projetar no outro, por mais diverso que seja de nós, o melhor que se tem com o desiderato de o motivar à irreverência de fazer o mesmo. Isto é liderar. Com uma visão de conjunto. De integração. Coletiva. Uma dimensão material enquadrada numa dimensão cultural. Que entende que não há padrões para o talento. Mas também não há fórmulas para a missão nem momento mais adequado para descobrir qual a nossa. Nem tão pouco há uma medida exata para o impacto que podemos gerar quando colocamos o que somos ao serviço de uma meta que não somos nós, mas que nos transforma integralmente.
No fim, há que perguntar: o que quero ser quando for, de novo, chamemos-lhe assim, “pequena”? Pequena perante tamanha missão que a reta adiantada da vida nos dá, na velhice, desagarrada de papéis, funções, cargos ou estatutos provisórios. Na senioridade, deverão surgir questões que saibam esclarecer os caminhos que tomámos, mais do que o destino que alcançámos. O legado que deixámos, mais do que o que construímos para nós, que somos finitos. A missão que fundámos, mais do que a vida que vivemos. Quem nos quiser conhecer profundamente, aceite ouvir-nos falar daquilo que esperamos.
Olhemos para os papéis da nossa vida a partir desta ética e desta estética absolutas. O caminho é coletivo, em diversidade, porque o alcance assim será sempre incrivelmente maior e sintonizado com uma esperança de transformar o mundo, que tem sempre razão. Mas as interrogações que nos levam ao coletivo e à diversidade são íntimas, interiores. E, aí, vêm-me sempre à memória as questões colossais da cientista política alemã Hannah Arendt, que perguntou: «Quem, senão eu?; Quando, senão agora?; Onde, senão aqui?».
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Presidente da PWN Lisbon, organização internacional focada no desenvolvimento da liderança. Há 18 anos no setor das comunicações, é profissional de comunicação e marketing, com o mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade Católica Portuguesa. Fundou o Entre | Vistas, plataforma digital de comunicação cultural que originou o livro da sua autoria As Perguntas que Somos.
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