O colapso do Silicon Valley Bank (SVB) traz rapidamente à memória a grave crise financeira que abalou a economia mundial em 2008. Afinal, trata-se da quebra daquele que era o 16.º maior banco dos Estados Unidos e a maior falência desde o colapso do Washington Mutual Bank há precisamente 15 anos.
A crise financeira de 2008 também teve origem no setor financeiro e ganhou proporções sistémicas e globais, provocando uma recessão na economia mundial como não se assistia há décadas. A atual crise no setor bancário norte-americano, em que já falharam três bancos no espaço de uma semana, está ainda rodeada por uma elevada incerteza.
É demasiado cedo para afiançar que esta crise não passará de um episódio de relevância diminuta. A confiança é a base do negócio da banca e as “ondas de choque” do atual stress podem assumir contornos graves e com efeitos ainda não percecionados.
Contudo, nesta altura, é extemporâneo comparar o encerramento do SVB com os factos que resultaram na queda do Lehman Brothers, e que deram origem à crise de 2008. Os problemas que estão na base dos dois momentos são bem distintos, sendo os motivos que resultaram no colapso do SVB bem menos preocupantes.
O “problema” de ter muitos depósitos
O SVB é um banco de características muito específicas - ligado ao setor das startups, capital de risco e empresas inovadoras e tecnológicas - sendo que a sua queda está ligada ao sucesso que resultou num rápido crescimento.
Depois do início da pandemia, estes negócios registaram um forte crescimento e o banco com sede na Califórnia viu os seus depósitos duplicarem para mais de 200 mil milhões de dólares. O dinheiro foi aplicado em obrigações soberanas dos Estados Unidos, ativos considerados seguros.
O problema é que, quando os clientes do SVB levantaram uma parcela destes depósitos, o banco foi obrigado a vender parte da carteira de títulos, que tinham perdido valor devido à rápida subida de juros por parte da Fed. Depois de materializar as perdas que eram apenas potenciais, o banco avançou com um aumento de capital que redundou num falhanço. A confiança do mercado estava perdida, os clientes levantaram um quarto dos depósitos em 24 horas e o colapso do banco foi inevitável.
Vítima de uma situação de excesso de liquidez, a gestão do SVB cometeu o erro fatal de aplicar o dinheiro em títulos de longo prazo que ofereciam retornos mais elevados, mas a prática está a anos-luz dos procedimentos que foram adotadas pela banca na crise financeira de 2008.
Após um “boom” no mercado imobiliário dos anos anteriores, os bancos norte-americanos criaram títulos complexos e de duvidosa qualidade que foram espalhados pelo sistema financeiro quando o seu valor já caía a pique devido à descida dos preços das casas e aumento do crédito malparado.
Em 2008, o problema estava espalhado por todo o setor financeiro (não só nos EUA) e existia uma elevada desconfiança sobre que bancos estavam mais expostos à crise do subprime. Atualmente, o problema dos depósitos em excesso está circunscrito a um segmento da banca norte-americana.
São os denominados bancos regionais, que apoiam sobretudo negócios locais e estão agora no olho do furacão, estando a ser alvo de uma fuga de fundos em larga escala, apesar de as autoridades norte-americanas já terem garantido que todos os depósitos estão salvaguardados.
Em qualquer parte do mundo, nenhum banco conseguirá sobreviver se, de um dia para o outro, perder um quarto dos seus depósitos. Daí que sejam preocupantes os contornos da atual crise.
2023 vs. 2008
Contudo, um conjunto de outros fatores evidenciam que a atual crise não tem paralelo com o que aconteceu há 15 anos.
Regulação. A crise financeira de 2008 surgiu depois de uma onda de desregulação no setor financeiro, sobretudo nos Estados Unidos e na banca de investimento. De então para cá, as autoridades em todo o mundo apertaram o crivo de forma muito pronunciada. Sobretudo sobre as instituições financeiras de risco sistémico, que têm atualmente um escrutínio muito mais apertado por parte dos supervisores. A criação de produtos financeiros complexos e o acesso por parte dos investidores de retalho é agora bem mais restrito.
Alavancagem e capital. A ação dos reguladores incidiu sobretudo sobre regras mais estritas para a alavancagem dos bancos, que é atualmente bem inferior aos níveis registados antes da crise de 2008. Os rácios de capital são agora bem mais exigentes, o que reduz o risco que os bancos podem assumir. Dito de outra forma, os bancos estão hoje em melhor forma para enfrentar situações adversas, como recessões, deterioração da qualidade dos ativos, aumento do incumprimento e outros constrangimentos.
Confiança permanece elevada. Quando rebentou a crise do subprime, o nível de confiança entre os bancos atingiu níveis mínimos. O mercado interbancário, onde os bancos emprestam dinheiro entre si, praticamente congelou. As taxas praticadas neste mercado dispararam e permaneceram elevadas durante anos, indiferentes à descida das taxas de juro por parte dos bancos centrais. Atualmente, não se verifica nenhum destes sintomas. Pelo contrário, as taxas de juro, sobretudo de curto prazo, registaram quedas vertiginosas nos últimos dias.
Situação financeira das famílias e empresas mais robusta. Se, em 2008, os balanços dos bancos estavam em péssimo estado, repletos de títulos de qualidade duvidosa, a situação financeira das famílias e das empresas não era muito melhor. O incumprimento dos particulares e das companhias disparou, infligindo perdas muito acentuadas no setor financeiro. Atualmente, apesar da inflação elevada, dos juros a subir e das perspetivas sombrias para a atividade económica, não se perspetiva uma evolução semelhante. A situação financeira das famílias beneficia do “escudo” das poupanças guardadas durante a pandemia, do endividamento mais baixo e do reduzido nível dos juros ao longo dos últimos anos. As empresas também apresentam uma situação financeira mais saudável.
Resposta das autoridades. A intervenção dos reguladores norte-americanos após o encerramento do SVB foi célere e considerada eficaz por parte dos analistas. Os depósitos não garantidos (acima de 250 mil dólares) foram todos salvaguardados e os bancos que necessitam de financiamento podem aceder a uma linha de liquidez de emergência criada para o efeito. São os depositantes que estão a ser resgatados e não os acionistas e investidores. Na crise de 2008, a resposta dos reguladores foi complacente e acabou por dar origem a resgates de diversas instituições financeiras com recurso a dinheiro dos contribuintes, o que colocou as finanças públicas de muitos países em dificuldades. A repetição de resgates de bancos é um cenário que parece pouco plausível nesta altura.
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Efeitos colaterais da política da Fed
O colapso do SVB acaba por ser um efeito colateral da política monetária da Reserva Federal dos Estados Unidos, cumprindo-se a velha máxima dos mercados de que, quando o banco central sobe os juros de forma agressiva, algo quebra pelo caminho.
Foi a política de estímulos monetários massivos e juros em mínimos históricos que inundou o sistema financeiro de liquidez, incentivando bancos como o SVB a efetuar investimentos em obrigações de prazos mais longos, que ofereciam rendibilidades descoladas de 0%. Foi a inversão agressiva da política monetária em 2022, com a subida de juros mais rápida em 40 anos, que deteriorou o valor desses títulos de dívida.
O SVB foi vítima desta evolução da política monetária e da incompetência da sua gestão em não percecionar que estava com uma bomba-relógio nas mãos se os clientes retirassem os depósitos e fosse forçado a desfazer-se de parte da sua carteira de investimentos para os reembolsar.
O problema das perdas potenciais das obrigações nos balanços dos bancos é comum a todo o sistema financeiro. No final de 2022, estas perdas potenciais superavam os 600 mil milhões de dólares nos Estados Unidos. Na Europa, a dimensão dos prejuízos potenciais é bem inferior.
Contudo, se os bancos conseguirem manter os títulos até à sua maturidade, estas perdas não serão materializadas. Os grandes bancos norte-americanos (ao contrário dos regionais) têm acesso a fontes de financiamento muito diversificadas, pelo que dificilmente serão pressionados a cristalizar prejuízos com a venda de obrigações para angariar liquidez.
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O que vão fazer os bancos centrais?
A forma como os bancos centrais vão agir daqui para a frente pode ser determinante para agravar/aliviar a crise que se vive atualmente no setor financeiro, sobretudo nos Estados Unidos.
No segunda-feira, no pico do stress com o colapso do SVB, o mercado de futuros indicava que os investidores estavam a descontar uma travagem a fundo no agravamento de juros. As perspetivas apontavam para uma subida de apenas 25 pontos base na reunião da próxima semana da Fed e uma taxa terminal de 4,7%, cerca de 1 ponto percentual abaixo do previsto antes da queda do SVB.
Com a taxa de rendibilidade das obrigações alemãs a dois anos a sofrer a maior queda diária de sempre, as expectativas para os juros do BCE também foram revistas em forte baixa para uma taxa terminal de 3,4% (o que compara com mais de 4% na semana passada). Contudo, o BCE já se comprometeu com um aumento de 50 pontos base na reunião desta quinta-feira e dificilmente fará marcha-atrás devido à queda do SVB.
A evolução dos juros dos bancos centrais continuará a ser determinada pela trajetória da inflação, sendo que o desenvolvimento da crise na banca dos EUA pode induzir uma maior cautela e uma pausa no ciclo de subidas mais célere do que o previsto.
Apontadas as razões que mostram que a situação atual não tem paralelo com a crise financeira, é importante salientar que tal não significa que o foco de tensão na banca norte-americana deva ser desvalorizado.
Não existem crises iguais e qualquer crise com origem na banca deve ser vista com toda a apreensão. Num mundo cada vez mais global, as repercussões podem ser abrangentes e com impacto significativo noutros setores de atividade e em todos os agentes económicos. A atuação dos bancos centrais voltará a ter um papel chave e não está afastado o cenário de que estejam a ser cometidos erros de política que, sem necessidade, provoquem/agravem uma recessão na economia mundial.
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Nasceu em 1977, sendo jornalista desde 1999. Iniciou a carreira no Jornal de Negócios, onde esteve mais de 20 anos, ocupando várias funções, sempre com foco no online. Atualmente é jornalista independente, assina a newsletter diária de mercados Morning Call e colabora de forma regular com o ECO. Formado em Gestão no ISEG, tem especial interesse por tudo o que está relacionado com os mercados financeiros.
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