Investimentos

Como a “nova era” na Alemanha está a mexer com os mercados

A Alemanha vai cortar com a tradição de controlo rigoroso das contas públicas para reforçar a defesa do país, o que está a ter impacto substancial nas ações e obrigações alemãs, bem como no euro.

Alteração histórica, mudança de paradigma, nova era, “bazuca” orçamental. Economistas e analistas não pouparam nas palavras para classificar as medidas que a Alemanha pretende implementar ao nível das contas públicas para proteger o país e a Europa e impulsionar uma economia que está estagnada há vários anos.

Depois de duas décadas de austeridade orçamental e um conservadorismo extremo na gestão das contas públicas, a maior economia europeia decidiu fazer um corte com o passado, propondo com uma alteração radical na evolução da despesa e da dívida que deixou os economistas surpreendidos e promete ter implicações significativas na Alemanha e nos seus parceiros da Zona Euro.

Sendo vários os fatores que motivaram esta alteração repentina de política, o gatilho principal esteve na posição assumida por Donald Trump no que diz respeito ao conflito na Ucrânia. Visando o fim rápido do conflito, os Estados Unidos pretendem um acordo com a Rússia que coloque um ponto final às ajudas financeiras e militares à Ucrânia, atirando para a Europa a responsabilidade de defender o continente europeu da ameaça russa.

Com a quebra de uma relação de parceria de décadas, os líderes europeus perceberam finalmente que têm de reforçar os gastos em defesa para garantir a segurança da região. A Alemanha não perdeu tempo e o líder da CDU forjou um acordo com o partido (SPD), que derrotou nas eleições para virar a página da austeridade orçamental do país. Dias depois, selou um acordo com Os Verdes para garantir o apoio às alterações constitucionais necessárias para a execução do plano.

A “bazuca” orçamental foi aprovada pela câmara baixa do Parlamento alemão (Bundestag) no dia 18 de março e recebeu “luz verde” final da câmara alta (Bundesrat) esta sexta-feira (21 de março). A CDU e o SPD também já fecharam um acordo para formar um governo de coligação, o que facilitará a execução das medidas. Estes são os três pontos principais do pacote que os economistas consideram representar a alteração orçamental mais radical desde a reunificação da Alemanha e deverá implicar despesa adicional acima de 1 bilião de euros:  

  • Gastos com defesa e segurança acima de 1% do PIB (cerca de 45 mil milhões de euros) não são afetados pelo travão ao endividamento que está inscrito na Constituição e limita o défice estrutural (exceto encargos com juros) a 0,35% do PIB. Na prática, deixa de existir limite ao endividamento para financiar despesas com a defesa da Alemanha.
  • Criação de um fundo especial, que fica fora da órbita do orçamento, com potencial de financiamento de 500 mil milhões de euros para investir em infraestruturas (transportes, energia, saúde e comunicações) nos próximos 12 anos. Deste total, 100 mil milhões de euros têm como destino o Fundo de Transformação Climática e 100 mil milhões de euros serão aplicados pelos estados federais.  
  • Os 16 estados alemães passam a ter margem para se endividarem em 0,35% do PIB por ano, o que corresponde a cerca de 16 mil milhões de euro por ano. Atualmente têm de ter orçamentos equilibrados (défice de 0%).

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Economia recupera e aumento de despesa não preocupa

Estas medidas abrem caminho para um aumento de largas centenas de milhares de milhões de euros na despesa ao longo dos próximos anos. Uma “bazuca orçamental” que os economistas estimam ser suficiente para retirar a Alemanha da situação de estagnação em que se encontra desde a guerra na Ucrânia, que colocou um ponto final na estratégia de tirar partido da energia barata e abundante.

O PIB da Alemanha encolheu 0,2% no ano passado, depois de ter contraído 0,3% em 2023. Excluindo o ano da recuperação da pandemia (+3,7% em 2021), desde 2017 que a economia alemã não regista um crescimento anual descolado de 1%. As perspetivas para os próximos anos continuam sombrias, com as instituições internacionais a apontarem para variações no PIB entre 0% e 1% até ao final da década.

Incorporando o impacto desta nova era na gestão orçamental, as perspetivas são mais animadoras. A Bloomberg Economics estima um impulso equivalente a 1% do PIB no curto prazo, podendo chegar a 2% do PIB em 2040. A impacto vai além das fronteiras alemãs, impulsionando o PIB da Zona Euro em 0,4 pontos percentuais no final de 2026, beneficiando sobretudo os países vizinhos (França e Itália).

No que diz respeito à evolução das contas públicas, o impacto será obviamente negativo, mas longe de preocupar os economistas. Se há país com margem para efetuar uma alteração orçamental desta magnitude, esse país é a Alemanha. A política adotada no passado, de apresentar orçamentos equilibrando e conter a dívida pública em redor de 60% do PIB, permite que agora o país possa abrir os cordões à bolsa sem gerar alarme.

Mesmo gerando défices anuais acima de 3% do PIB ao longo da próxima década, a Alemanha não deixará o estatuto de economia do G7 com o endividamento mais contido. Segundo uma sondagem do Financial Times a economistas, a Alemanha tem margem para aumentar o endividamento em 2 biliões de euros ao longo da próxima década sem implicações negativas para a economia. Neste cenário, o rácio da dívida pública passaria dos atuais 63% para “apenas” 86% do PIB.     

No anúncio destas medidas, logo após a vitória nas eleições, o próximo chanceler alemão, Friedrich Merz, ensaiou um discurso à Mario Draghi, prometendo fazer tudo o que for necessário para garantir a segurança da Alemanha. Quando, em abril de 2012, o então presidente do BCE fez o célebre discurso “whatever it takes” para proteger o euro, as repercussões no mercado foram muito fortes. A reação à determinação de Merz também está a ser significativa, afetando diversos ativos.

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Bolsa alemã lidera ganhos

Após uma valorização próxima dos 20% em 2024 que deixou outros índices acionistas europeus para trás, o DAX continuou a acumular máximos históricos em 2025 e volta este ano a liderar os ganhos entre as principais bolsas europeias. O índice que agrupa as maiores empresas alemãs valoriza 17% este ano, impulsionado sobretudo pelas expetativas de que a inversão da política orçamental vai colocar a economia numa trajetória de crescimento que dará fôlego aos resultados das companhias.

A Bolsa alemã acumula cinco meses seguidos de ganhos, com a mudança de governo a assumir um papel preponderante na aposta dos investidores nas cotadas do país. Desde que o Executivo de Olaf Scholz começou a colapsar, em meados de novembro do ano passado, o DAX acumula uma valorização de 20%. Desde as eleições de 23 de fevereiro, o índice sobe 5%, um desempenho que ganha maior relevância pois no mesmo período o norte-americano S&P500 entrou em correção (queda de 10% face a máximos).

Alargando o horizonte temporal, o desempenho da Bolsa alemã é ainda mais extraordinário. Desde os mínimos de finais de setembro de 2022, o DAX acumula uma valorização de 92%, ofuscando os ganhos das outras ações europeias (Stoxx600 valoriza 43%) e até das norte-americanas (S&P500 ganha 58% e Nasdaq valoriza 67%) no mesmo período. Só as Sete Magníficas (150%) conseguem um desempenho superior.

Apesar desta performance, os analistas acreditam que as ações alemãs continuam atrativas e com potencial para ganhos adicionais, sobretudo se forem executadas com sucesso as medidas que ainda estão no papel, fazendo regressar o histórico motor da economia europeia. Os problemas estruturais da economia alemã não vão desaparecer de um dia para o outro com esta mudança de paradigma, mas pode ser o início da inversão da tendência descendente, o que pode ser suficiente para atrair mais investimento para as ações cotadas em Frankfurt.

Euro afasta-se da paridade

A “bazuca” alemã também tem deu um contributo decisivo para inverter a trajetória descendente do euro. A moeda única arrancou o ano a negociar perto da paridade face ao dólar e a maioria dos analistas apostava que seria uma questão de tempo até ser necessário mais de um euro para comprar um dólar.

A evolução do euro foi bem diferente do que era previsto. De mínimos de dois anos em janeiro (1,02 dólares), o euro passou para máximos de outubro, próximo dos 1,10 dólares. Uma pouco habitual valorização de 7% num curto espaço de tempo, que reflete as perspetivas mais favoráveis para a economia europeia, bem como o agravamento abrupto dos receios de recessão nos Estados Unidos.

Além de inverter a sua política de contas públicas, o governo alemão também está a pressionar a Comissão Europeia a aliviar as regras orçamentais, por forma a permitir um aumento de gastos em defesa pelos países europeus. Outra dinâmica que reforça a atratividade do euro está na política monetária, pois os estímulos orçamentais impulsionam a inflação, o que pode travar a descida de juros por parte do Banco Central Europeu.

Yields da Alemanha em máximos de 2023

O fim do conservadorismo orçamental da Alemanha também teve reflexo significativo no mercado de dívida, com os investidores a exigirem um prémio adicional para financiar a maior economia europeia, o que arrastou os custos de financiamento de todos os países do euro.

No dia seguinte ao anúncio da “bazuca”, a yield das obrigações alemãs a 10 anos registou um agravamento de 30 pontos base (0,3 pontos percentuais), o que representa o maior salto diário desde a reunificação do país (35 anos). A taxa prolongou o movimento ascendente e está atualmente em máximos de 2023 encostada aos 3%. A dívida alemã continua a ser vista como um ativo seguro e de baixo risco e o rating máximo de AAA não está para já ameaçado. Este agravamento das yields reflete a perspetiva de um aumento significativo de emissões de dívida para financiar o aumento de despesa, bem como a deterioração dos vários indicadores de contas pública da Alemanha.

O BNP Paribas admitiu recentemente que a yield das obrigações alemãs pode atingir 4%, regressando assim aos níveis registados na grande crise financeira do final da primeira década deste século. O Barclays recomendou aos clientes que vendam obrigações alemãs (a yield varia em sentido oposto à cotação) devido ao aumento das necessidades de financiamento do país, sugerindo em contrapartida os títulos de dívida de Portugal devido à solidez das finanças públicas nacionais. Uma recomendação impensável há não muito tempo e que exemplifica bem qual é o alcance da alteração na gestão das contas públicas da maior economia europeia.

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Nasceu em 1977, sendo jornalista desde 1999. Iniciou a carreira no Jornal de Negócios, onde esteve mais de 20 anos, ocupando várias funções, sempre com foco no online. Atualmente é jornalista independente, assina a newsletter diária de mercados Morning Call e colabora de forma regular com o ECO. Formado em Gestão no ISEG, tem especial interesse por tudo o que está relacionado com os mercados financeiros.

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