Os números são claros e deixam pouca margem para dúvidas: “Nos agregados de pessoas com deficiência, com idades entre os 16 e os 64 anos, o risco de pobreza (em 2021) foi de 31,2%, quase o dobro do registado em agregados sem pessoas com deficiência (18,8%)” (in Relatório "Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2022", 6.ª edição, da autoria do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos - ODDH/ISCSP-ULisboa).
Segundo dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, disponibilizados pelo Serviço de Estatística da União Europeia (Eurostat), citados pelo Relatório ODDH, em termos evolutivos, desde 2014 que se verificavam melhorias constantes em todos os agregados familiares em Portugal. No entanto, em 2021, esta tendência inverteu-se, intensificando-se as dificuldades, particularmente nos agregados com pessoas com deficiência, o que poderá estar relacionado com a crise económica e financeira, despoletada pela pandemia.
Em Portugal, o custo médio de vida de uma pessoa com deficiência é bastante superior ao de uma pessoa sem deficiência. Paralelamente, mas em contraciclo, os rendimentos das pessoas com deficiência tendem a ser bastante inferiores e direcionados, em grande medida, para responder a necessidades básicas como terapias, medicação, entre outras necessidades essenciais para o bem-estar e vivência desta faixa da população.
Para conhecer melhor e de forma mais sustentada as necessidades das pessoas com deficiência motora em Portugal, a Associação Salvador desenvolveu um questionário no qual aborda questões como a situação económica, o nível de autonomia, as principais barreiras sentidas nas diferentes áreas da vida, entre outros.
Com uma amostra de 635 pessoas com deficiência motora, é-nos possível retirar algumas conclusões, que corroboram os dados mencionados anteriormente. Prova disso, está patente quando analisamos o rendimento líquido mensal e 61% dos inquiridos refere que recebe menos de 900€ por mês e 75% considera que este rendimento não é suficiente para fazer face às despesas.
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Atrasos nas respostas do Estado contribuem para crescente isolamento
Para fazer face a estas dificuldades e reduzir as barreiras existentes, o Estado concede alguns benefícios às pessoas com deficiência, como, por exemplo, o apoio à compra de produtos de apoio (cadeiras de rodas, andarilhos, canadianas, etc), facilidade na aquisição ou construção de casa, atribuição de um assistente pessoal, incentivos ao emprego, entre outros benefícios fiscais, que garantam a sua participação plena, equitativa e autónoma na sociedade.
No entanto, para que o cidadão com deficiência possa usufruir destes benefícios, necessita de ver emitido o seu AMIM – Atestado Médico de Incapacidade Multiusos, cuja atribuição e renovação tem sido pautada por inúmeros atrasos. Embora a lei estipule um prazo máximo de 60 dias para a realização da junta médica na qual é feita a atribuição do grau de incapacidade e emissão do respetivo Atestado, a realidade é bem diferente. Mais de 46% dos inquiridos pela Associação Salvador diz esperar mais de 6 meses pela atribuição do atestado.
Ainda assim, o problema não fica por aí uma vez que, mesmo depois de atribuído o AMIM, das 59% de pessoas que dispõem de produtos de apoio atribuídos pelo Estado, 34% esperaram mais de 6 meses para os obter e 53% tiveram custos adicionais enquanto esperavam, vendo-se obrigadas avançar com a compra de produtos de apoio, a suportar custos com transportes, fisioterapias, obras na habitação, entre outros, aguardando, posteriormente, pelo reembolso.
Recentemente, foi proposto pela Iniciativa Liberal um Projeto de Lei que pretendia tornar mais célere o financiamento de produtos de apoio para pessoas com deficiência ou incapacidade temporária. Atualmente, a Lei estipula que o Estado tem 90 dias, após o início de cada ano, para definir o montante das verbas destinadas às entidades prescritoras e 45 dias, após diferimento, para a entrega dos produtos de apoio. No entanto, a realidade é bem diferente e, como se comprova, os prazos não são cumpridos. No dia 12 de maio, o Projeto de Lei foi aprovado por todos os partidos, à exceção do Partido Socialista, que votou contra, sem qualquer justificação.
É patente a dificuldade acrescida por parte das pessoas com deficiência em investir em áreas de vida que potenciem o seu bem-estar e integração social, acrescendo ainda a escassez de informação disponível sobre os apoios existentes e de respostas complementares aos subsídios, e as barreiras físicas e sociais no acesso a serviços. Esta combinação de fatores resulta no isolamento social e na diminuição de iniciativa e autoestima das pessoas com deficiência.
Ainda que sejamos categóricos na intenção de não nos substituirmos ao Estado, a missão da Associação Salvador prende-se diretamente com a promoção da inclusão das pessoas com deficiência motora na sociedade e com a melhoria da sua qualidade de vida, o que, evidentemente, não nos permite baixar os braços.
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Ação Qualidade de Vida já mudou a vida de centenas de pessoas com deficiência motora
Foi nesse sentido que, há mais de 15 anos, iniciámos o projeto Ação Qualidade de Vida, como forma de dar resposta aos inúmeros pedidos de ajuda que nos chegam anualmente de pessoas com deficiência motora que não têm os recursos financeiros necessários para garantir uma qualidade de vida digna, vendo-se obrigadas a colocar em suspenso projetos, sonhos e ambições.
Através desta iniciativa e na impossibilidade de responder positivamente a todos os pedidos, criámos este processo de candidatura anual, através do qual procuramos conhecer cada caso e avaliá-lo, recorrendo a um júri externo e segundo critérios e requisitos previamente definidos, atribuindo assim apoios diretos e pontuais a pessoas com deficiência motora e comprovada falta de recursos financeiros.
Existem três categorias com objetivos distintos: “Obras em casa”, que visa eliminar barreiras para uma vida com dignidade; “Equipamentos Desportivos Adaptados”, de forma a criar condições para o desenvolvimento de uma atividade desportiva e/ou melhoria do treino e rendimento desportivo; e “Formação e Emprego”, como forma de aumentar competências e conhecimento para uma melhor integração no mundo do trabalho e/ou estimular o empreendedorismo.
Preferencialmente, os apoios são direcionados a casos que não encontram resposta dentro dos programas de apoio promovidos pela Segurança Social, Instituto de Emprego e Formação Profissional, Ministério da Saúde ou outros, no entanto, surgem sempre situações excecionais mais urgentes, que procuramos responder através de Apoios Extra, comparticipados pela Associação Salvador, Entidades ou particulares.
Em 15 anos, já mudámos a vida de 597 pessoas com deficiência motora e das suas famílias, num total superior a 1,5 milhões de euros atribuídos em apoios, contribuindo assim, de forma muito concreta, para o aumento do rendimento disponível dos agregados familiares, através da categoria de “Formação e Emprego”; para o aumento da autonomia e segurança dentro de casa e nas atividades do dia-a-dia, graças às “Obras em Casa”; ou para o aumento da prática desportiva regular, que contribui para uma maior autoestima, socialização e bem-estar, através da atribuição de “Equipamentos Desportivos Adaptados”.
No próximo dia 28 de junho, realiza-se a 16ª Cerimónia de Entrega de Apoios da Ação Qualidade de Vida, na qual iremos anunciar os apoios atribuídos nesta edição particularmente especial, por se realizar no ano em que assinalamos 20 anos de existência e trabalho junto das pessoas com deficiência motora e da sociedade.
Foram 20 anos de muitas batalhas e inúmeras barreiras, mas, acima de tudo, foram 20 anos de muitas conquistas. Hoje, temos um país mais alerta para temas como as acessibilidades, a inclusão e a igualdade de oportunidades. No entanto, o caminho ainda é longo e só possível com o empenho e compromisso de todos, sem exceção.
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A Associação Salvador, fundada por Salvador Mendes de Almeida, em 2003, é uma Instituição de Solidariedade Social que atua na área da deficiência motora. Ao longo do tempo, tem desenvolvido projetos diferentes e ambiciosos que tiveram excelentes resultados e um demonstrado impacto na melhoria da integração e qualidade de vida de inúmeras pessoas com deficiência, potenciando os seus talentos e sensibilizando para a igualdade de oportunidades.
A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.
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