Comecemos por Emily, a jovem desesperada. O cartão de cidadão diz-lhe que tem a vida toda pela frente, mas que vida pode ser essa, quando já se tem uma dívida de 70 mil dólares por causa de um crédito pessoal para estudantes? Quando os trabalhos que consegue arranjar, na economia de gigas, mal dão para pagar as despesas correntes? Quando uma pequena falha – que vai parar ao registo criminal – lhe fica colada à pele, e ao currículo, impedindo-a de aceder a empregos mais bem pagos? Quando as boas oportunidades, quando aparecem sob a forma de um estágio não-remunerado, afinal, são apenas uma oportunidade de o dono da empresa ter uns meses de trabalho gratuito?
Fraudes com cartões de crédito? Ora, coisas só do cinema
O filme Emily, the Criminal (2022) pretende retratar a era em que os trabalhadores voltaram a perder parte dos seus direitos, onde não existem sindicatos, onde o patrão pode decidir a seu bel-prazer quando contratar e despedir. Emily tem tanta vontade de ser livre, de livrar-se de vez do sufoco da sua dívida, que acaba por aceitar entrar num esquema fraudulento. Ela “só” tem de pegar num cartão de crédito falso e ir a lojas comprar aparelhos. Pagam-lhe bem pelo crime, e, de repente, o dinheiro na mão deixa de ser uma miragem. Além disso, o intermediário é um homem carismático, que sabe como convencer os seus compradores fictícios… Depois do primeiro golpe, motivada pelo dinheiro fácil e pela adrenalina das situações limite, a protagonista entra numa espiral de crimes cada vez mais graves e perigosos que nos mostram o submundo do mercado negro.
No site imdb, na secção de curiosidades sobre o filme de John Patton Ford (que tem na interpretação de Aubrey Plaza um dos pontos fortes), lê-se que a rodagem demorou apenas 21 dias. Realizado "nas piores partes de Los Angeles", sente-se, de facto, o ritmo frenético das ruas. Ali, vive-se com urgência, no limite do risco.
Antes de passarmos ao filme seguinte, por curiosidade, fomos ver as estatísticas sobre fraudes com cartões de crédito nos Estados Unidos. Segundo o estudo do site security.org, em 2024, 52 milhões de americanos tiveram cobranças não autorizadas nos seus cartões. E, se tivermos em conta a estimativa de que cerca de 60% das pessoas que têm cartões de crédito já foram vítimas deste tipo de fraude, talvez deixemos de pensar que isso é coisa que só acontece aos outros.
A felicidade que uma boa esfregona pode dar
Mas para quê iniciar um novo ano com um cenário tão negro? Pois bem, veja-se, logo de seguida, este Joy (2015), título que é o nome da protagonista (interpretada por Jennifer Lawrence, que foi nomeada para o Óscar de melhor atriz), mas cuja palavra também significa alegria, satisfação, contentamento. Bem precisamos de histórias positivas, como a deste filme livremente inspirado na vida de Joy Mangano, uma mulher que se tornou uma das maiores empreendedoras da América.
O início, porém, parece igualmente negro. Tal como tantas mulheres do século passado, Joy parecia estar condenada à carreira de mãe e doméstica, mesmo que a sua mente fervilhasse de ideias inventivas. O mundo dos negócios, já se sabe, era para os homens. E enquanto outros alcançavam o sucesso através das suas ideias, a jovem mãe, divorciada do pai dos seus três filhos, conhecia cada vez mais dificuldades em conciliar os vários papéis que lhe eram exigidos, e em ter dinheiro suficiente para pagar as contas.
O slogan promocional diz-nos que “na América, o banal precisa do extraordinário todos os dias”. E será a frustração desse quotidiano repetitivo de tratar do lar e da falta de tempo e energia para as inúmeras tarefas que lhe eram exigidas a gerar uma questão transformadora: e se ela inventasse algo que lhe facilitasse a vida?!
Eis que aparece a esfregona twist. Um milagre para o trabalho das donas-de-casa, que fez sucesso nos canais de televendas e foi ponto de partida para a criação de um império. No caso da Joy Mangano da vida real, depois da esfregona, vieram cabides mais finos para poupar espaço no armário, têxteis para a cama fáceis de pôr e tirar para lavar, uma linha completa de neutralizadores de odores, óculos de leitura, malas de viagem com rodinhas... Tudo com vendas na ordem dos milhares de unidades e milhões de faturação.
Mulheres com voz própria, num mundo de homens
O realizador David O. Russell, porém, não quis que o seu filme fosse uma biografia fiel à vida de Mangano. Para tal, alterou o argumento original – ninguém tem apelidos, por exemplo –, criando personagens e injetando pedaços de outras histórias de mulheres de sucesso.
Assim, mais do que um catálogo de invenções, o filme pretende representar um conto sobre uma mulher empreendedora que é capaz de prosperar no mundo patriarcal dos negócios. Que é capaz de superar todos os que quiseram destruir-lhe os sonhos. Ela própria foi descrente, desesperou: "O mundo não te dá oportunidades, o mundo destrói as oportunidades. Parte-te o coração. Eu devia ter escutado a minha mãe, quando tinha dez anos. Devia ter passado o resto da minha vida a ver televisão e a esconder-me do mundo, como ela fez." Mas não escutou. Joy é, por isso, a história de uma mulher que, sem ter de sacrificar a sua vida familiar, consegue emancipar-se e ter uma voz própria no mundo. "Nunca mais voltes a falar por mim, sobre o meu negócio", diz ela a alguém que a representou numa reunião, sem o seu consentimento.
E ficamos com a impressão de que, se Joy se cruzasse com Emily, era provável que lhe desse uma oportunidade a sério.
Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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