Chamemos-lhes empresas, firmas ou companhias, elas fazem parte do nosso quotidiano. Mas será que as empresas foram sempre iguais àquelas que agora conhecemos? Terão tido sempre o mesmo intuito? Em 2003, um documentário tentou responder a estas e outras perguntas, numa altura em que grandes companhias se viam envolvidas em escândalos mediáticos.
Antes das respostas, diga-se que The Corporation é, em si mesmo, um feito: os produtores precisaram de três anos e meio para angariar o dinheiro necessário, a que se seguiram três anos de filmagens e 18 meses de pós-produção. O resultado desta saga é um destilado de centenas de horas de imagens e cerca de 70 entrevistas. Fica desde já o aviso: nem todas as intervenções merecem a mesma atenção e o documentário tem, de certa forma, a sua própria agenda. Concordarmos ou não com o que vai sendo dito decorrerá, em grande parte, do prisma com que olhamos para a realidade ao nosso redor. E é por isso que o documentário ganha fôlego sempre que consegue mostrar-se mais objetivo.
Uma génese cheia de boas intenções
A parte histórica parece bem fundamentada. Segundo o narrador de The Corporation, há meros 150 anos, as empresas eram organismos relativamente insignificantes. O linguista, filósofo e ativista político Noam Chomsky (o entrevistado mais interessante de todos) refere que as empresas consistiam numa associação de pessoas contratadas temporariamente por um Estado, com vista ao desempenho de uma tarefa específica. E é-nos dado um exemplo prático: um grupo de pessoas com diferentes competências que se juntava para a construção de uma ponte sobre um rio. Outra entrevistada salienta que as empresas inicialmente criadas nos Estados Unidos tinham disposições muito claras acerca do tempo de existência, do montante de capitalização, do que podiam fazer ou fabricar. Como foi, então, que se deu a transformação que fez destas instituições algo que detém tanto poder e influência sobre as nossas vidas?
Chomsky tenta sintetizar os como e os porquês: «Foram dados direitos de pessoa imortal às empresas. Mas estas “pessoas” não tinham consciência moral. Tratava-se de um tipo especial de pessoas, projetadas por lei, que apenas precisava de preocupar-se com os seus acionistas.» Durante a Revolução Industrial, estas entidades ganham o papel dominante na vida dos cidadãos. Vistas como um membro de pleno direito da sociedade, as empresas passam a lutar por um único objetivo: gerar lucro para os acionistas. E isto sem preocupações de terem uma personalidade boa ou má. De certa forma, era como se as questões da índole moral não fossem chamadas para o fluir dos negócios.
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Calminha, que nós, as empresas, não nascemos más
Estaremos, portanto, perante uma organização do mal? Bem, se as empresas realmente forem nocivas, isso será porque as moldaram para ser assim. Foram pessoas que definiram as empresas; são pessoas que pensam por elas e que determinam os seus comportamentos. Por exemplo, quando se defende que para sobreviver num mundo de predadores, é preciso ser-se agressivo; só assim se consegue ganhar quota de mercado. Deste modo, é mais fácil encarar-se uma catástrofe ou uma guerra como meras oportunidades de negócio.
Dêmos novamente a palavra a Chomsky, para que ele nos relembre que as leis não estão gravadas em pedra e que é possível analisar as raízes legais das empresas, vendo o que pode ser alterado. É perfeitamente viável que a empresa transite para uma nova realidade, tornando-se num conjunto de pessoas orientado para um objetivo comum. Qual? Não fazer o mal, de uma forma generalista. Ou, se quisermos uma aplicação mais específica, não fazer mal ao ambiente, por exemplo. Nas décadas mais recentes, as empresas realmente têm-se esforçado por criar uma imagem pública positiva, promovendo-se como entidades indispensáveis, promotoras do progresso. E a sustentabilidade e as energias renováveis emergiam como uma oportunidade para que se pudesse levar a cabo uma segunda revolução industrial.
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Sequela para atualizar a matéria dada
O sucesso obtido por The Corporation viria a gerar, quase duas décadas, uma sequela do documentário. Datado de 2020, The New Corporation recorre outra vez a testemunhos de vários quadrantes – jornalistas, políticos, economistas, etc. – para nos dar o panorama atual das firmas, as quais se movimentam numa sociedade em que os seres humanos passaram a ser encarados como um bem de consumo comercializável. Mas também é neste novo cenário de sociedade que a pandemia, a crescente inequalidade ou as mudanças climáticas acabam por exigir uma mudança de paradigma, rumo a um capitalismo mais natural, criativo e consciencioso. Assim, as novas empresas pretendem combinar responsabilidade social e lucro, deixando de lado o seu aspeto mais egoísta e ganancioso. Pelo menos em teoria. Mas será que, na prática, as empresas são assim tão livres para alterarem os seus objetivos fundamentais? Será que os desejos do diretor geral de uma empresa mais amiga e aliada dos seus trabalhadores, e da comunidade em que está inserida, não entrarão em conflito com as exigências dos acionistas que apenas querem ganhar dinheiro?
São estas e outras questões a que The New Corporation tenta responder. Talvez não o faça de forma tão eficaz como no documentário original, por evidenciar um tom menos equidistante e bastante mais pessimista, patente logo no subtítulo: “A Infelizmente Necessária Sequela.” Com menos diversidade nos entrevistados – e com quase todos a optarem por mostrar um dedo acusatório –, o filme parece desviar-se demasiadas vezes da análise das empresas, em si mesmas, para se focar em temas mais vastos da economia, do capitalismo, da sociedade. Sinal de desespero, por se achar que o mundo empresarial talvez não tenha mudado assim tanto? Ou mera ilustração de que a evolução do conceito e objetivo de uma empresa continua a ser um processo em curso, o qual conhecerá ainda muitas voltas e reviravoltas?
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