Para alumiar um pouco o rosto de Carlo Pietro Ponzi temos de nos socorrer, sobretudo, da palavra escrita. As entradas enciclopédicas e artigos jornalísticos sobre o nosso protagonista dizem que nasceu em Lugo, Itália, no ano de 1882, e contam com alguma extensão e detalhe a vida do imigrante italiano que se tornou milionário nos Estados Unidos. Ainda assim, parece que estamos perante um daqueles casos em que, na maior parte das vezes, se fala de um nome – Ponzi – sem se saber efetivamente de quem se trata.
Este relativo desconhecimento residirá, em grande parte, no facto de a indústria audiovisual andar a passar ao lado desta história. Não houve nenhum Robert De Niro a interpretar o papel do homem que, num espaço de meses, ascendeu da pobreza à riqueza; nos ecrãs, tudo o que existe sobre Charles Ponzi é ilusivo, de segunda linha, quase impossível de encontrar. Para quando a grande série, mais o reputado documentário, que projetem mundialmente esta fascinante figura?
A autobiografia quase perdida
Porquê fascinante? Porque, mesmo após várias leituras, ainda sentimos uma certa dificuldade em entender quem foi realmente Charles Ponzi e, principalmente, que intenções teria. Por um lado, não será imediata a associação a um criminoso sem escrúpulos, nem ao psicopata ganancioso Bernie Madoff, que usou um esquema de Ponzi para enriquecer ilicitamente, nas barbas dos reguladores de Wall Street; por outro, Carlo também não deixa de ser, sob qualquer perspetiva, um burlão.
Na tentativa de percebermos melhor esta figura desconcertante, mergulhámos na fonte mais direta que encontrámos: uma autobiografia que, também ela, se manteve na penumbra até muito recentemente. Quando finalmente surgiu uma edição mais ampla de The Rise of Mr. Ponzi (“A Ascensão do Sr. Ponzi”, numa tradução livre, visto que ainda não existe versão portuguesa), o subtítulo só contribuiu para aumentar a intriga: A longamente suprimida autobiografia de um génio financeiro. Em que ficamos: génio financeiro ou mero ladrão? E, por acaso, estas duas visões serão assim tão antagónicas?
Adiemos um julgamento sumário do homem para passarmos os olhos pelos 27 capítulos em que o autor se trata a si mesmo por “Mr. Ponzi”. Os títulos dos capítulos, aliás, são indicativos do que lá se vai passar: nuns, o senhor Ponzi faz isto; noutros, o senhor Ponzi faz aquilo; na maioria, acontece isto e aquilo ao senhor Ponzi.
Partir com 200, chegar sem tostão
Ao que parece, ou segundo disse ao New York Times, Carlo descendia de uma família que, em tempos, fora abastada. Depois, tinham surgido dificuldades e falta de dinheiro. Ainda assim, Carlo andara pela universidade. Os colegas ricos encaravam o curso como umas férias e, mesmo sem dinheiro, Ponzi acompanhou-os na frequência de bares, teatros, cafés, óperas. Gastou tudo o que tinha. Falido e sem canudo, descobriu na imigração uma oportunidade de enriquecer. Faria como tantos outros antes de si: viajaria até aos Estados Unidos, ganharia fortuna, regressaria a Itália um homem rico. A família, desejosa de recuperar a glória perdida, encorajou-o.
Segundo o relato do próprio, Carlo partiu com 200 dólares no bolso, a bênção da mãe e a ideia-feita de que as ruas da América estavam pavimentadas a ouro. Uma pessoa só tinha de se abaixar e agarrá-lo. À chegada, restavam-lhe 2 dólares e meio. O resto do dinheiro? Perdera-o a jogar às cartas, durante a travessia oceânica, com um jogador – provavelmente batoteiro - profissional. Aportado em Boston, sem vintém no bolso, era apenas mais um pobre imigrante em busca do sonho americano; mas Carlo assegura que sobressaía da multidão, por estar impecavelmente vestido dos pés à cabeça. Com aquela indumentária fina, assemelhava-se a um cavalheiro; um filho de família rica, vindo em passeio. Já então as aparências iludiam.
De terra em terra, até ao Canadá
A estrada para a fortuna, afinal, não se estendia aos imigrantes como um tapete vermelho. Enganado pelo batoteiro, com cêntimos no bolso e o orgulho ferido, valeu a Ponzi um bilhete pré-comprado de comboio. Na autobiografia, sucedem-se relatos de fome, frio, noites mal dormidas. O rapaz imigrante não sabia falar inglês e, por isso, não conseguia arranjar empregos de escritório. E desenrascar-se como os outros, pegando no que aparecesse? “Enquanto estudante e homem de físico fraco, não estava talhado para o trabalho manual”. Mas era preciso viver de alguma coisa, e o jovem passou quatro anos a transitar de cidade, entre empregos mal pagos. Detestou ser empregado de mercearia, vendedor de seguros, reparador de máquinas de costura; mas todas as ocupações lhe serviam para ir aprendendo inglês.
Introduzamos uma nota dissonante: parece que Ponzi se esqueceu, na autobiografia, de referir que alguns dos seus despedimentos se deveram a pequenos roubos, ou ao facto de se “enganar” a dar o troco aos clientes… Seja como for, em julho de 1907, Carlo dava por si a entrar no Canadá. Batera no fundo: chegava sem bagagem e apenas com uma nota de dólar no bolso. Mas seria em Monreal que a sorte lhe sorriria. Tão desesperado quanto decidido, entrou no Banco Zarossi. Passados cinco minutos, via-se contratado como empregado de caixa; o dono do banco, Louis Zarossi, gostara dele. Ao fim de tantos anos, Mr. Ponzi conseguia um trabalho que lhe agradava, num banco italiano cujos clientes eram imigrantes italianos.
Eu, falsificador? Fui tramado, isso sim
Sol de pouca dura. O banco começou a ter problemas financeiros, o gerente fugiu para o México, Carlo perdeu o emprego. Ponzi escreve que Zarossi o encarregou de ficar a cuidar da mulher e das duas filhas. Pois bem, Carlo mudou-se com elas para uns quartos mobilados e eis que o jovem de 26 anos, bastante suscetível ao charme das raparigas (é ele quem o afirma), se apaixona pela filha mais velha do banqueiro. Ela tinha 17 anos. Muito bonita, chamara também a atenção de um antigo colega de escola de Carlo. O triângulo amoroso formava-se, pelo menos na autobiografia de Mr. Ponzi, para justificar o que aí vinha. O amigo, apaixonado pela rapariga, armou-lhe uma cilada.
Uma denúncia relacionada com falsificação de cheques levaria à detenção de Carlo. Em tribunal, o juiz sentencia-o. O amigo tramara-o, por inveja. Outra explicação possível? Bem, talvez o nosso imigrante italiano tenha falsificado alguns cheques, consciente do que estava a fazer…
Mr. Ponzi ignora as leis de imigração
Na penitenciária de St. Vincent, Ponzi sentiu que deixara de ser um cidadão para ser um número de prisioneiro. O fura-vidas, porém, fez-se útil, acumulando postos escriturários, ascendendo nas hierarquias internas, até alcançar o perdão antecipado, atribuído por bom comportamento. Em liberdade, algumas fontes referem que passou a dedicar-se a atravessar imigrantes ilegalmente para os Estados Unidos. Um dia, apanharam-no.
Na autobiografia, Carlo relata o sucedido como um equívoco. No texto e no tribunal, fez-se de inocente. Ele ia simplesmente até aos Estados Unidos, de comboio, e apenas tinha servido de intérprete a cinco imigrantes italianos que não falavam inglês. Era preciso permissão para passar a fronteira? Desconhecia o facto… A ignorância de nada serviu: apanhou mais dois anos de prisão. Cumpriu-os em Atlanta.
A prosa de Carlo está cheia de apartes em que o Sr. Ponzi refere o impacto que estas e outras situações tiveram no seu ser. Ideias sobre o que a vida lhe foi ensinando, de forma dura e, a seu ver, muito injusta. Um banqueiro que fugia para não ser apanhado. Um amigo que o traía por ciúmes. Uma namorada que desaparecia sem dizer nada. As coisas talvez se fizessem assim, com trapaça. Talvez ele estivesse num longo estágio, numa aprendizagem para depois dar o seu próprio golpe de mestre.
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Rose, a beleza americana
Mas, antes disso, uma rosa sem espinhos atravessou-se no seu caminho.
Em julho de 1912, Mr. Ponzi via-se novamente um homem livre, embora com cadastro. “Não mostraram qualquer intenção de deportar-me”. Seguiram-se empregos dignos, problemas, travessuras, despedimentos, fugas, novas cidades, um furacão em Nova Orleães. Este percurso turbulento teria um capítulo mais feliz em Wichita Falls. Aos 35 anos, Charles conhecia Rose. No seu livro, confessa ter sido amor à primeira vista. Alguém os apresentou. Conversaram um pouco. Despediram-se. Mais tarde, perguntaram-lhe o que achara da rapariga.
– Acho que ela é maravilhosa – respondeu Ponzi. – Vou casar com ela.
– O senhor deve estar doido! – exclamou a senhora que os tinha apresentado.
– E estou! Estou doido por aquela rapariga!
Charles encontrara em Rose a sua beleza americana. Oito meses depois, os dois estavam casados.
[continua em Charles Ponzi - parte II]
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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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