"Toma lá, dá cá", expressão ainda hoje bastante usada e reconhecida, bem podia ser uma definição de comércio. Eu dou isto, tu dás aquilo. Em tempos, era preciso que o “isto” e o “aquilo” fossem coisas desejadas por ambos os lados do potencial negócio; depois, o aparecimento do dinheiro facilitou as transações dos isto e dos aquilo.
E o advento da moeda gerou uma série de novos avisos populares. "Coisa rara, coisa cara", realça-se no dicionário compilado pelo Major Hespanha, que contém uma versão mais longa do adágio muito conhecido "o que é barato sai caro", aqui complementada com o acrescento e o "é bom, custa dinheiro".
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Vendedor: astuto e rápido
Está bem de ver que "o mau, por todo o preço é caro". Por isso, o povo pede cuidados na hora de comprar. É preciso "ver para crer", também no comércio, pois há alturas em que os intervenientes no negócio – o vendedor e comprador – até parecem inimigos, pelo menos no campo dos provérbios populares.
Entremos, então, no ringue para apresentar os contendores. Senhoras e senhores, no canto esquerdo, de calções vermelhos, o Veeeendeeeedoooor! Para ele, "amigos, amigos… negócios à parte", até porque "não perde um sem outro ganhar". Ei-lo a movimentar-se, ciente de que "a tenda e a venda são para quem as entenda", prestes a aplicar três golpes que julga fatais:
- "Mercadoria bem apresentada, está metade vendida."
- "Quem desdenha, quer comprar."
- "As coisas não valem senão o que se fazem valer."
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Comprador: cauteloso e informado
Mas calma, que, do outro lado, está alguém capaz de lhe responder à letra. Senhoras e senhores, no canto direito, de calções azuis, o Cooooompraaaadooooor! E eis que ele se esquiva logo com um soco certeiro: "Engana-me no preço e não no que compro." Temos adversário avisado. Ele fez o trabalho de casa. Conhece bem os intentos do vendedor e vem munido de armas para o desmascarar. "O que perdeu nos alhos quer cobrar nas cebolas", começa por dizer, para depois tentar o knock-out. "Abre um olho para vender e dois para comprar."
Ainda assim, o primeiro round termina sem vencedor declarado. O árbitro entra em cena e procura a conciliação, realçando o valor da honestidade nisto de comércios: "Bom vinho escusa pregão; bom peso faz vender o pão." Nada feito; as partes continuam em campos opostos.
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O trunfo da pedra de toque
Soa a campainha, e inicia-se o segundo assalto. Os adversários estudam-se, durante uns longos segundos. O público espera ansioso pelo primeiro golpe.
- "Honra e proveito, não sabem num só peito", desfere o comprador.
- "Vale mais não vender, que perder", contraria o vendedor.
- "Quem paga adiantado é, sempre, mal servido", grita o comprador.
- "Encomenda sem dinheiro, fica no tinteiro", sentencia o vendedor.
Neste toma lá, dá cá, feito de respostas e contrarrespostas, permanece no ar a sensação de empate técnico. Mas os provérbios populares parecem ter o seu favorito. E eis que o comprador, para evitar ser enganado, tira do bolso a famosa "pedra de toque" que, de acordo com a definição da Collecçao de Provérbios, Adágios, Rifãos, Anexins, Sentenças Morais e Idiotismos da Lingoa Portugueza (1848), equivale a um superpoder que impede a trapaça: "Pedra mui dura, na qual se esfregam as peças de ouro ou prata cuja pureza se pretende conhecer, comparando-a com metal já tocado, isto é, experimentado, e acrisolado com água-forte."
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Tão amigos que eles pareciam…
Foi golpe de mestre. O vendedor bem protesta que ele é que costumava usar aquela pedra de toque, mas de nada serve. O árbitro prossegue a contagem decrescente e, chegado ao zero, o vendedor ainda está de bruços. A sineta toca, e o comprador é declarado vencedor, pelo menos na quantidade de provérbios que tem do seu lado. Pena. Antes do combate, eram apenas dois bons amigos.
Um tinha aquilo que o outro queria. Agora, falta um dente ao dos calções vermelhos. "Custar os dentes da boca", lá diz o rifão. E ao dos calções azuis? Mal nos consegue ver, de olhos semicerrados. "Custar os olhos da cara", pois claro.
Lá vem de novo o árbitro a tentar pôr água na fervura. Para nosso espanto, ele apresenta-se como sendo o Conselheiro Bastos, autor da Collecçao de Pensamentos, Máximas e Proverbios, de 1847, que tem sempre algo de diferente para nos contar. Desta vez, parece uma visão liberal sobre a arte de comerciar: "O comércio percorre a terra, foge d'onde o oprimem, e estabelece-se onde o deixam respirar".
De golpe em golpe, até ao entendimento
A distração provocada pelo conselheiro chegou para o vendedor se levantar. E, já recuperado, eis que recomeça a montar a sua banca. E o comprador? Pois aproxima-se, obviamente, para apreciar o que ali começa a ser exposto.
"O que muito vale muito custa", pensa o comprador, de olhos postos naquilo que tanto deseja. Ainda assim, tenta baixar o preço. O vendedor sorri, relembrado do seu avô comerciante: "Quem não sabe sorrir, não abra uma loja." Ele manteve a loja de família e sente que a venda está garantida. "Quem regateia quer comprar", repete para si mesmo, enquanto cede a fazer um desconto. "Quem compra e vende, lá se entende", diz o povo. Afinal, no fim das contas, talvez possamos concluir que o extenuante combate terminou com uma vitória para ambas as partes. Foi, não foi?
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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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