Agricola, cuja primeira versão desenhada por Uwe Rosenberg teve lançamento em 2007, tornou-se um verdadeiro clássico dos jogos de tabuleiro modernos. E tão clássico se tornou que o seu criador acabou por dedicar-se a formular iterações da mesma ideia, situadas em diferentes épocas históricas. Falaremos de três delas, todas baseadas nas tarefas agrícolas e pecuárias, sendo que a inicial só podia ser reflexo da dureza dos tempos. «Século 17: Uma época nada fácil para a agricultura», avisa-se logo na primeira página do livrinho das regras.
O pão nosso de cada dia
Situado na Europa Central, por volta de 1670 e na sequência de vários séculos em que a peste dizimou milhões de pessoas, Agricola propõe que assumamos o papel de uma família ávida por prosperar. Transportados do nosso tempo para o passado, aterramos numa cabana com apenas dois quartos. Cada elemento da família será necessário para atingir a prosperidade, gerando recursos - como madeira ou argila – que permitam renovar a habitação, cultivando os terrenos, criando animais que, após anos de fome, permitam introduzir a carne na alimentação base. O crescimento da família é um dos objetivos a cumprir, mas primeiro será preciso assegurar as condições para a subsistência de todos.
Um dos mecanismos mais interessantes de Agricola consiste no aumento a cada ronda das ações que estão ao dispor dos jogadores. Esta limitação inicial de opções acaba por simular na perfeição um ambiente de pobreza, de escassez de recursos; aliás, é comum encontrar opiniões de jogadores que referem ter sentido o sufoco de arranjar comida suficiente para todas as bocas, ronda após ronda. Será através do trabalho árduo, do sacrifício exigido à estrutura familiar, que as condições de vida poderão melhorar. De facto, o fluxo de cada fase acaba por mimetizar a importância de cada jornada de trabalho. Cada dia conta na tarefa infindável de angariar comida para alimentar a família. E quando não se tem suficiente? É preciso ir pedi-la (o que, no final, acarreta perda de pontos).
Um retrato das gentes do século XVII
A sensação de estarmos a acompanhar a evolução histórica da Humanidade surge quando conseguimos aumentar o tamanho da nossa cabana ou, melhor ainda, quando se renova a casa de madeira para uma construção em argila ou em pedra. Ou quando construímos estábulos que acomodam novos animais ou aperfeiçoamos as técnicas de arar os campos. Algures durante o dia, coze-se pão; em certas alturas, vai-se à pesca. Às vezes, conseguem-se grandes melhorias, como passar a ter uma lareira, um forno de pedra, ou abrir uma olaria, uma marcenaria, uma cestaria. Ter uma estante de livros talvez não seja propriamente uma prioridade, mas quem a tiver ganhará pontos de vitória e de bónus.
Para dar frescura e atmosfera ao jogo, Rosenberg criou um baralho de cartas de ocupações que inclui acrobatas, pais adotivos, adestradores de animais, colhedores de bagas, carpinteiros, homens de negócios, queimadores de carvão, destiladores de aguardente, bonecreiros, académicos, tutores, pastores, comerciantes, vendedoras, jornaleiros, pescadores de rede, até patifes... entre muitos outros ofícios que, de repente, nos fazem viajar até à sociedade que compunha o século XVII. E, lembremo-nos, à dificuldade de dar de comer a todas as bocas em cada casa.
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E agora, a mesma ideia (mas com cavernas e anões)
Em 2013, surgiu Caverna: The Cave Farmers, baseado em Agricola e que estendia o número máximo de jogadores de 4 para 7. Mais fantasiosa, esta derivação propõe um cenário de cavernas habitadas por famílias de anões aventureiros. A sobrevivência, aqui, depende de escavar a rocha à procura de pedras preciosas e desbastar a floresta contígua à montanha para se criarem pastos e campos aráveis. Os dois elementos iniciais de cada família também podem embrenhar-se em melhorar e expandir a sua casa, fazendo túneis de ligação a novos aposentos que possam alojar os seus futuros filhos ou funcionem como espaços de trabalho ou lazer. (Há cavernas de todos os tipos: para cozinhar, matar animais, costurar, armazenar comida ou dinheiro, uma cave para escrever e uma cave para orações, um sítio para tomar o pequeno-almoço e até uma cave para receber visitas…).
Nisto de escavações, deparar com uma fonte de água equivale a uma bênção divina. E caso se dê de caras com o minério adequado, pois bem, forjem-se as armas que permitem sair em expedições de saque. Bem nos disseram que os anões eram aventureiros… Porém, como o nome do jogo indica, o principal sustento virá da agricultura e da pecuária. Em Caverna podemos criar burros, cães, javalis, gado e ovelhas; há miniaturas também dos respetivos estábulos, tal como para cereais, vegetais, pedra, madeira, minério e rubis. No final, tudo o que foi amealhado ou construído acaba convertido em pontos dourados.
Viva a abundância da região bávara!
Afastando-se destes mundos mais mirabolantes, Rosenberg regressou aos cenários agrícolas realistas em 2020, com Hallertau. Desta vez, somos remetidos para uma época de abundância – algures pela década de 1850 –, quando a região bávara que dá título ao jogo se tornou na principal zona de produção cerealífera da Alemanha (e uma das maiores em termos da Europa Central). Vivia-se, então, uma época dourada para a cerveja. A cidade de Ingolstad, a norte de Hallertau, fora precursora, ainda em pleno século 16, da lei que acabaria por vir a ser adotada por todos os estados germânicos; uma legislação que ditava os ingredientes que entravam no fabrico da cerveja e, além disso, que regulava o preço a que a mesma devia ser vendida.
Em pleno século XIX, portanto, cabe-nos a tarefa de, enquanto líderes de uma aldeia, providenciarmos as melhores condições de trabalho aos nossos camponeses e artesãos. O desenvolvimento requer a construção de uma carpintaria, um local de arrefecimento, uma padaria, uma manufatura e, claro está, uma cervejaria. Cada local requer as suas matérias-primas e existem nove produtos diferentes com que os jogadores enchem os seus armazéns: linhaça, centeio, cevada, lúpulo, carne, leite, lã, couro e argila. Num espaço à parte, criam-se mimosas ovelhinhas. Esteticamente, Hallertau é um regalo multicolorido e acaba por ser com redobrado prazer que se movem os tokens de um lado para o outro, arrecadando colheitas, vendendo produtos, trocando-se isto por aquilo. O cerne do jogo está precisamente na escolha das ações a executar em cada ronda, num típico jogo de worker placement ao estilo caixa-de-areia (ou seja, um jogo que possibilita múltiplas estratégias). Face às 20 ações disponíveis, pode-se estar relativamente despreocupado com o que os adversários fazem. Ocuparam o espaço que queríamos nesta ronda? Bem, ainda temos outras 19 (!) opções para colocarmos o nosso trabalhador…
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Tabuleiro na mesa e cervejinha ao lado
A magnitude de diferentes opções, que pode ser assustadora em teoria, demora apenas um par de jogos a tornar-se familiar e até acolhedora. Em Hallertau, a vida de trabalho no campo é prazerosa. Tosquiam-se ovelhas, limpam-se campos, aduba-se e semeia-se, compram-se tijolos, vendem-se terrenos, vai-se à cidade para obter licenças de construção ou comprar mais umas ovelhinhas. E com quatro conjuntos diferentes dos vários tipos de cartas (este também é um jogo de combinação de cartas), Hallertau promete diversidade a cada partida.
É certo que o jogo termina com o somatório de pontos e a coroação do vencedor. Mas, num tempo de tanta abundância, a viagem acaba por revelar-se uma experiência reconfortante, sem a ansiedade de saber se haverá comida para a refeição seguinte. Joga-se a Hallertau como se se estivesse numa esplanada a tomar uma cerveja. Ah, mas prefere uma coisa mais acutilante e opressora? Pois bem, regresse a Agricola e à devastação causada pela peste. Afinal, nisto de economias agrícolas, há sempre um jogo de Uwe Rosenberg adequado a cada estômago.
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