Enquanto o vício das raspadinhas não se tornar suficientemente atrativo para tema de um filme (provavelmente nunca será…), as roletas e as cartas continuarão a reinar em termos cinematográficos. Comecemos por conhecer Molly Bloom, uma ex-esquiadora olímpica que se tornou a mentora de jogos de póquer altamente exclusivos, onde só entrava gente famosa e/ou pessoas cheias de pasta. Havia de tudo nessas sessões secretas – e, bem, ilegais –, em que estrelas de Hollywood, ídolos do desporto, magnatas dos negócios e mafiosos russos apostavam fortunas a cada mão. Não era difícil prever que as antenas do FBI também começassem a sintonizar as frequências daqueles jogos e que esta história com fundo real se tornasse inspiração para um filme. Escrito e realizado pelo talentoso argumentista Aaron Sorkin, Jogo da Alta Roda (Molly’s Game, 2017) é um mergulho no submundo do jogo ilegal, sem dúvida, mas também a história de uma mulher que conseguiu impor-se num universo dominado por homens para erguer um negócio de milhões. Jessica Chastain foi a atriz escolhida para interpretar a “empreendedora” e, diga-se, a escolha veio da própria Molly. Quero-a a ela, terá dito ao realizador, e assim foi. Molly Bloom, no fundo, continuava a ter poder.
Perdi 100 milhões, toma lá o cheque
Segundo a própria, a maior quantia que viu perder numa dessas noites de jogo foi 100 milhões de dólares. Parece que o jogador perdedor saldou a dívida no dia seguinte… E, por falar em jogadores, há muita especulação e boatos sobre quem seria o “Jogador X”, supostamente um nome famoso dos grandes ecrãs. A principal aposta recai em Tobey Maguire, mas no filme não se apontam dedos a gente real; bem sabemos como isso é feio. Os spoilers também são desagradáveis, mas, se já falámos antes do FBI, não será difícil imaginar que este filme só existe porque a história se tornou pública; logo, não é spoiler se dissermos que este negócio de jogo clandestino irá dar para o torto. Na verdade, logo aos seis minutos de filme, uma série de agentes de armas em punho irrompem pela casa de Molly, dando-lhe ordens para pôr as mãos no ar. Revistam-na, algemam-na e forçam-na a ler o cabeçalho de umas folhas: «Estados Unidos da América vs Molly Bloom». Ora bolas…
Leia ainda: A banca nos dois lados do Atlântico
Eu sei de cartas, tu tens dinheiro, vai uma partida?
Mais do que um filme de suspense, este é um filme de tribunal, de investigação, de se voltar atrás para mostrar como é que Molly conseguiu construir o seu império. De acordo com a secção de curiosidades do site imdb, os atores principais e secundários foram rodeados de figurantes que eram jogadores profissionais de póquer. O realizador queria o maior realismo possível, até no modo como as cartas eram dadas. Parece até que as estrelas e os figurantes se entretinham com partidas de póquer nos intervalos entre a rodagem das cenas, o que fez com que os extras acabassem por levar para casa bastante mais dinheiro do que o salário… Apetece ir buscar uma das frases de Molly: «Quando perdes, sabes o que é que te pode consolar? Ganhar.»
A esperança só desaparece na última ficha
Talvez fosse disso mesmo que o protagonista de A Queda de um Jogador (Owning Mahowny, 2003) estivesse à procura. Sentir-se bem, sentir-se melhor, através do jogo. Talvez a questão não seja propriamente o dinheiro, mas sim a sensação que está por detrás de ganhar. A adrenalina. Peguem numa raspadinha e testem. Não há ali um pequenino frisson enquanto se riscam as estrelinhas ou os cifrões? Será que é desta?
Baseado novamente numa história real, protagonizado pelo já tristemente morto Philip Seymour Hoffman, este filme introduz-nos no vício dos casinos, das apostas desportivas, das corridas de cavalos, da crença de conseguir dar a volta ao texto, jogando mais e mais, e mais e mais. Não podia ser mais impressionante a cena em que Dan Mahowny perde 100 mil dólares em sucessivas apostas, até à última ficha, sem ter as forças ou a sensatez necessária para suster a espiral autodestrutiva. No final, uma mão cheia de nada, dívidas acumuladas, uma lágrima a deslizar pela face.
Eu não tenho um problema, não senhor
«Não tenho um problema de jogo, tenho um problema financeiro; e sei o que estou a fazer», diz o gerente bancário Dan, já atolado no lamaçal, já a pensar num esquema fraudulento para angariar dinheiro fresco. Com o intuito de pagar as dívidas? Não. O gerente de casino, interpretado por John Hurt, mostra-se encantado com Dan, um homem que não quer saber de luxos, mulheres, drogas, comida… Só se interessa pela Senhora Sorte. Dan Mahowny é um purista; um jogador puro-sangue que só se importa com a carta que lhe sairá a seguir. «Sabes porque é que ele quer ganhar? Para ter dinheiro para continuar a perder.»
O filme serve igualmente para denunciar os esquemas utilizados pelo casino para manter o jogador por perto. Mesmo que o gerente desconfiasse que o dinheiro gasto por Dan nas mesas não era propriamente dele… E Dan perdeu tanto, mas tanto, que se tornou no maior caso de fraude bancária perpetrada por um só homem do Canadá. Eis a história de uma magnífica obsessão, sintetizada numa das frases promocionais: «Para alguns é um jogo. Para outros, é um hábito. Mas para Dan Mahowny, vencer as probabilidades é tudo.»
Leia ainda: As lições dos empresários gananciosos
A vertigem do jogo comparada com o resto da vida
Um tudo capaz de pôr em causa carreira, relacionamento amoroso, amizades. De forma inconsciente? Às vezes, nem tanto. Ou talvez chegue uma altura em que tudo se torna demasiado claro e doloroso, como neste diálogo do filme:
Psicólogo: Numa escala de 1 a 100, como é que classificaria a emoção que tinha quando jogava?
Dan Mahowny: Hum... cem.
Psicólogo: E quanto é que daria à maior emoção que já sentiu sem ser ao jogo?
Dan Mahowny: Vinte.
Psicólogo: Vinte. E como é que se sente sobre ter de viver o resto da sua vida com um máximo de vinte?
Dan Mahowny: Bem. Vinte está bem.
Façam as vossas apostas (ou não…)
«Vinte está bem» é a frase que nos perdura na memória quando, mesmo a acabar os créditos finais, se ouve o som da bolinha às voltas na roleta. Mas nós resistimos a terminar numa nota perdedora. Por isso, fiquemos a saber que Dan Mahowny, dito Brian Molony no mundo real, após perder na roleta, nos dados e nas cartas quase 5 milhões que não eram seus, acabou por ganhar o direito a uma segunda vida. Cumpriu pena de prisão pelo desfalque e, ao sair, envolveu-se em programas de esclarecimento sobre a adição ao jogo. Avançou para uma carreira de consultor financeiro, casou, teve filhos. O casino que o “ajudara” a aprofundar o vício foi condenado, como medida disciplinar, a fechar por um dia. No dia seguinte, business as usual, e lá se abriram as portas aos sedentos de pousar as fichas no par ou ímpar, no preto ou vermelho, no zero ou no trinta e seis. Rien ne va plus, diz o croupier, fechando as apostas. Alguém poderá ganhar, muitos vão perder, e alguns são capazes de ter virado costas às mesas de pano verde. Então, e vai uma raspadinha ou quê?
Leia ainda: Como explicar uma crise financeira em 500 palavras
A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.
Deixe o seu comentário