É praticamente impossível resumir o conteúdo do livro ou do documentário em causa num pequeno texto. Apetece ficar só por dizer que vale mesmo a pena folhear as páginas escritas pelo economista francês ou espreitar a bela adaptação ao grande ecrã, realizada por Justin Pemberton. Mas, já que aqui estamos, tentemos descrever esta obra que atravessa os séculos mais recentes da nossa História (desde os tempos da Revolução Francesa até ao presente), para nos confrontar com ideias adquiridas, como aquela de que a acumulação de riqueza anda de mãos dadas com o progresso social.
Liberdade, igualdade, fraternidade (depois de muita opressão)
Regressemos, primeiro, ao século XVIII, quando era a aristocracia que detinha o poder e o dinheiro. Na altura, os proprietários reinavam a seu bel-prazer; os pobres, esses, não tinham direitos, nem forma de ascender socialmente ou de melhorar a sua condição económica. Veio então a imparável (e sanguinária) Revolução Francesa, que impôs o lema “liberdade, igualdade, fraternidade”. Mas, que se passa agora, em pleno século XXI? Teremos voltado a um simulacro dos tempos em que as elites detinham a maior parte da riqueza e não sentiam vontade nenhuma de a redistribuir pelo resto das pessoas?
Se foi esse o caminho seguido, não faltam razões ou acontecimentos que talvez o possam explicar, e o documentário, através de entrevistas a especialistas e excitantes imagens de arquivo, não deixa pedra sobre pedra. Aqui se fala da revolução industrial, altura em que o capital deixou de estar ligado à propriedade de terras, passando a produção de riqueza para as fábricas (riqueza para os proprietários, uma vez que os operários se viam sem direitos ou ordenados dignos…). Aqui se relembra o papel anterior da escravatura na acumulação de riqueza, quando a mão-de-obra escrava até podia ser dada como garantia num pedido de empréstimo. E se reafirmam as vantagens obtidas pela Europa durante o período do colonialismo, sustentado na força militar, num mundo que então trabalhava em favor dos impérios.
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Lembra-se de Gordon Gekko? «A ganância é boa»
Chega? Então e que dizer do aparecimento da moda, e da indústria do Natal, e do colapso do sistema económico e social da União Soviética, que reforçou a crença no capitalismo, na desregulamentação do mercado e na glorificação da propriedade privada? Pois bem, diz-se que o mesmo se aplica agora às inovações no campo das tecnologias, dos transportes, das telecomunicações: tudo terá servido para o aprofundar das desigualdades.
Se já o dissemos, voltamos a repetir: a informação constante deste documentário é tanta que temos de dar um passo de gigante para aterrar nos nossos tempos. Aqui chegados, deixam-nos o alerta de que a classe média está a empobrecer. À custa das crises do petróleo, de se encarar os recursos humanos como um custo, das empresas que preferem não investir nos seus colaboradores, das margens de lucro que se entregam aos acionistas em vez de se repartirem pelos trabalhadores. Lembram-se da figura de Gordon Gekko, no filme Wall Street? «A ganância é boa» tornou-se um credo, quando devia ter soado como uma crítica. Veio então a desregulamentação, o enriquecimento dos capitalistas, a redução dos impostos aplicados aos mais ricos. Nos anos 1980 e 1990, a economia deixou de funcionar para a maioria das pessoas, apesar de o acesso indiscriminado ao crédito dar a sensação de que se passava precisamente o oposto. Mas, quando a bolha do imobiliário rebentou em 2008, grande parte das pessoas deixou de conseguir pagar as suas prestações.
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A morte anunciada da classe média?
Como se estas pesadas heranças não fossem suficientes, aprimoraram-se os paraísos fiscais, criaram-se companhias fantasmas, surgiram empresas tecnológicas sem fronteiras geográficas, deslocalizou-se a mão de obra. O mercado de trabalho alterou-se, com as pessoas a serem os seus próprios patrões, mas sem que as empresas tenham de lhes pagar direitos, como segurança social ou subsídio de férias. Dentro dos conceitos do capitalismo moderno, muito assente na liberdade, a especulação imobiliária criou uma guerra entre gerações, com os mais novos a sentirem dificuldade em arrendar ou comprar casa. E, ano após ano, os ricos voltaram a ser muito ricos.
A riqueza voltou a ser a origem de mais riqueza e, tal como no passado, esta concentração do capital trouxe novamente para a rua grandes manifestações contra a desigualdade. Com a matreirice habitual, os movimentos políticos ultranacionalistas não desaproveitaram a oportunidade, erguendo-se em cima do desânimo geral. Basta assistir aos noticiários, e lá estão eles, a apontarem o dedo a todos os que consideram culpados da situação.
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Uma lição resumida de História
Em apenas 101 minutos de duração (há dias em que os telejornais duram quase tanto como isso), o documentário Capital in the 21st Century tem ainda tempo e imagens para abordar o aparecimento dos direitos das mulheres nos anos 1920, a euforia da bolsa e o crash financeiro de 1929, as bancarrotas e o desemprego crescente da Grande Depressão, a pobreza absoluta de cujas trevas surgiram os movimentos fascistas na Europa. Sem esquecer a II Guerra Mundial, descrita como uma guerra de poderio industrial transformado em poderio militar, e as consequentes mudanças, já em tempo de paz, com a implementação de direitos novos para os trabalhadores, impostos sobre a riqueza, limites colocados ao poder do capital. Os 1950 seriam a década das oportunidades para todas as pessoas; os tempos que forjaram uma classe média com um crescente poder de compra. Exatamente a classe que, atualmente, está em risco de extinção.
Razões para se estar otimista ou pessimista?
Chegados ao fim, constata-se que o mundo do capital (como tudo o que envolve) está repleto de grandes desafios. Razões para estarmos pessimistas? Thomas Picketty acha que não. «Atualmente, os desafios para se criar uma sociedade mais igualitária são obviamente diferentes aos desafios existentes no século XX. Mas parece-me importante sublinhar que não existe qualquer impossibilidade técnica para que isso aconteça; trata-se, sobretudo, de um desafio político e intelectual. E a boa nova é que conseguimos encontrar na História razões para estarmos otimistas. A História mostra-nos que, caso queiramos ter uma sociedade coesa, de forma pacífica e harmoniosa, então teremos de impedir que a desigualdade se torne muito elevada.»
Na receita para esta nova harmonia, defende-se o controle do capitalismo, ou melhor, o ir além do capitalismo, através de meios mais democráticos e inclusivos que possam projetar as sociedades no século XXI. Aprovem-se ou não as ideias do economista francês, tenham-se ou não as mesmas visões sobre o capital e a riqueza, a verdade é que esta viagem por uma parte significativa da História do nosso mundo se transforma, a cada segundo visionado, num documentário verdadeiramente imperdível.
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A informação que consta no artigo não é vinculativa e não invalida a leitura integral de documentos que suportem a matéria em causa.
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