O mesmo tema – o mercado bolsista – visto por lados contrários do Atlântico: um corretor britânico e um corretor norte-americano que, aparentemente, só parecem divergir na forma de enganar os outros. Mas, segundo os protagonistas das histórias, também há diferenças nos princípios da coisa…
Fraude servida com chá das cinco
Baseado na história e livro autobiográfico de Nick Leeson, funcionário do banco privado Barings, Rogue Trader (de 1999, que recebeu o título português “Jogador de Alto Risco”) revela-nos como um ambicioso corretor foi capaz de, sem ajuda de mais ninguém, levar à bancarrota uma das instituições bancárias mais antigas e importantes da Grã-Bretanha. Interpretado por Ewan McGregor, a história transporta-nos até aos emergentes mercados asiáticos – primeiro a Indonésia, depois Singapura –, onde o ritmo frenético da bolsa exige a tomada de decisões em meros segundos. Uma boa compra ou venda pode gerar lucros imediatos. Uma má? Uma espiral de perdas.
Se, em termos de cinema, Rogue Trader pode não ser das propostas mais estimulantes, em contrapartida contém várias lições sobre o mundo da economia. Aos 11 minutos, por exemplo, Nick fala-nos sobre compra e venda de futuros; aos 14, elucida-nos sobre as diferenças entre margem inicial e margem variável. Tudo num ambiente tipicamente britânico, cheio de boa educação entre chefias e subordinados. Aqui não se ouvem insultos. O negócio é importante, mas isso não obriga a que se entre no campo da ofensa pessoal. E qual é mesmo o negócio? Para Nick Leeson o mercado não passa de um casino gigante. E será nessa enorme roleta que a sorte lhe irá falhar, com o corretor a afundar-se em perdas, a desenvolver um esquema para reaver o dinheiro perdido, a ver o barco afundar-se cada vez mais, obrigando-o a perder a fleuma britânica e, por fim, os escrúpulos. O corretor-estrela, na sua estratégia de fuga para a frente – que chegou a envolver falsificação de documentos –, conseguiu que o Barings Bank perdesse 50 milhões de libras num só dia. É obra.
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Um oceano de diferença nas posturas
Diz-se que o verdadeiro Nick Leeson, depois de saldar as suas contas com a justiça, recebeu parte dos lucros acumulados pelo filme. A compensação, talvez, de o argumento de Rogue Trader se basear no livro de memórias do ex-corretor. O que talvez explique um perfil do criminoso que, de certa forma, é bastante fofinho. Querem saber as últimas palavras dele? «Apesar dos rumores de contas bancárias secretas e milhões escondidos, eu não obtive lucros pessoais à custa das minhas transações ilegais. Para ser absolutamente honesto, às vezes até penso ‘quem me dera tê-los obtido’.»
Mude-se de filme, agora para Boiler Room (de 2000, que ficou “Dinheiro Quente” em português), e eis que o cenário se altera radicalmente. Nos Estados Unidos, não há dúvida do que comanda tudo: «a honra está no dólar.» Por isso, o protagonista, em busca do sucesso (e da validação do pai), arranja um emprego como corretor numa empresa de investimento sedeada nos arredores da cidade, cujos fundamentos podem não ser tão legítimos como parecem à primeira vista… O ambiente é típico de um clube de rapazes. Cocaína, piadas machistas, bebida, avidez por dinheiro. E Seth Davis (Giovanni Ribisi), que começara a sua carreira de empresário com um casino clandestino para os miúdos do bairro, descobre rapidamente a forma de encaixar os constantes insultos aos novatos. É que ele acredita nas promessas de que pode vir a ganhar milhões de dólares.
Longa vida ao culto de Gordon Gekko (e outros que tais)
O discurso de Ben Affleck, logo no primeiro quarto de hora do filme, tornou-se uma cena de culto para os jovens corretores, à semelhança do que aconteceu com cenas de outros filmes de que já falámos, desde Glengarry Glen Ross a Wall Street. O inesperado culto pela personagem de Gordon Gekko, aliás, está bem patente neste Boiler Room, na cena em que os corretores seniores, agregados em redor de um televisor, dobram as falas ditas por Gekko e companhia. Eles decoraram tudo, palavra por palavra.
Na empresa onde trabalham, a formação dada aos novos recrutas passa por seguir as leads, saber falar ao telefone, sentir o cliente do outro lado. É preciso ser agressivo, insistir na venda, saber contornar as desculpas que surgem do outro lado da linha. «A cada chamada que fazem, é feita uma venda», diz a personagem de Ben Affleck (Jim Young). «Ou vocês vendem ações ao cliente ou ele vende-vos uma razão para não poder comprar. Seja como for, acontece uma venda. A única pergunta é: quem é que vai fechar o negócio? Vocês ou ele? Sejam implacáveis!»
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Os rapazes a serem rapazes dos anos 1990
O jovem Seth Davis está pronto para ser implacável, mesmo que não se sinta totalmente à vontade num ambiente de trabalho onde reina a pressão psicológica, o assédio moral, a humilhação, a misoginia. No escritório, nos restaurantes, nas saídas à noite, os rapazes parecem estar constantemente a comparar o comprimento das pilinhas (ou o valor dos carros, dos relógios, dos fatos), num afluxo de aparentemente inesgotável testosterona adolescente. «Dizem que o dinheiro não compra a felicidade?», pergunta Jim Young. «Vejam o raio do sorriso no meu rosto. De orelha a orelha, miúdo.» E, no meio disso, que importa se o negócio da corretora for apenas uma fachada; que importa se tudo não passar de um esquema fraudulento de venda de ações? Nada. Não lhes importa nada. «Quem vos disser que o dinheiro é a raiz de todo o mal é porque não tem cheta.»
Pois é, um sorriso de orelha a orelha. Pelo menos até ao momento em que a máscara cai perante a família ou em que a polícia entra de rompante pela porta do escritório.
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