Ainda haverá quem tenha conseguido escapar ileso a tantos esquemas fraudulentos, tantos iscos apetecíveis, tantos negócios aparentemente incríveis que não passam de bolinhas de sabão? Pois.
Vamos lá então ver se os rifões podem funcionar como uma espécie de grilo falante que nos ensine a olhar duas vezes para o que está à nossa frente. Haverá algum anexim que nos peça para refletir um bocadinho antes de nos atirarmos de cabeça? Ou será que os conselhos populares só vêm é complicar o que já é bastante complexo? Bem, talvez possamos começar por tentar conhecer algumas manhas dos burlões…
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A arte de bem burlar
No capítulo de conhecer com que linhas se cosem os aldrabões, felizmente, estamos bem fornecidos de sabedoria popular. Percorramos a lista:
- "Artes de berliques e berloques", que Perestrello da Câmara traduz por “peloticas, artimanhas”.
- "Com papas e bolos se enganam os tolos", rifão que também encontramos nas versões "com bananas e bolos é que se enganam os tolos" e "com papas e bolos se enganam meninos e tolos".
- "Contos da carochinha", que Perestrello da Câmara explica como “puerilidades, petas, historietas que se contam às crianças”, num anexim que deriva da carocha, “inseto preto com seis pernas e dois cornos, atributos do anjo das trevas, protetor das bruxas e feiticeiros, segundo a crença vulgar”.
- "Dourar a pílula", que passa por envolver algo nalguma coisa agradável, para melhor a fazer engolir, ou, por outras palavras, “disfarçar, encobrir pretexto”, a que o dicionário do Reader’s Digest acrescenta uma explicação: “Antigamente, a farmacopeia usava esse engodo, embrulhando as pílulas em finíssimo papel dourado, o que tornava possível engoli-las sem sentir-lhes o gosto”.
A vítima também é culpada ou apenas vítima?
Ainda assim, mesmo com tantos cuidados, mesmo perante tantos avisos populares, há quem seja apanhado. Foi aquele que "caiu na esparrela" o outro que "caiu como um pato", e mais aquele que "ficou chuchando no dedo", que é como quem diz, ficou “mamado, burlado, com as esperanças malogradas”. Enfim, o coitado comeu mesmo gato por lebre, porque fizeram dele gato sapato. É como "ir à lã e ser tosquiado". "Não lhe achou uma espinha!", ri-se o burlão, daquele que “comeu, bebeu tudo sem dificuldade, acreditou tudo sem repugnância”.
Calma. Acontece aos melhores. "Uma vez engana ao prudente, e duas ao inocente". Repetimos: acontece aos melhores, até aos mais prudentes. Mas, se "ao mentiroso, convém ter boa memória", também convém ao enganado saber relembrar o que lhe aconteceu. É que uma vez o caldo entornado… "Nunca fiar de quem uma vez te enganar." As avós também costumavam dizer: "Na primeira quem quer cai, na segunda cai quem quer." Ou, na forma ainda mais perentória listada por Francisco Rolland, "enganaste-me uma vez, nunca mais me enganareis".
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Levante o dedo quem nunca caiu numa esparrela
Vai ser cada vez mais difícil atravessar uma vida sem ser enganado uma, duas, três vezes. Isto de "escapar de boa" a uma boa cilada, a uma traição, a um esquema bem montado, também tem muito de sorte. E, se é preciso precavermo-nos o mais possível, também é preciso sabermos aceitar o tombo.
Acabemos este texto com três provérbios esperançosos. Dois deles dizem-nos que algum sentido de justiça, enfim, o mundo há de ter.
"Por muito que o engano se encobre, ele mesmo se descobre."
"O que arma a esparrela muitas vezes cai nela."
Já o último devolve-nos a esperança de que, feitas bem as contas, a humanidade não esteja assim tão dividida ao meio entre vigaristas e vítimas de vigaristas:
"São mais os enganos que as pessoas a enganar."
Oxalá.
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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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