Chico Buarque – A Construção (1971)
Em plena Ditadura Militar brasileira, Chico Buarque canta a história de um trabalhador da construção civil, numa letra que nos leva da casa dele, onde se despede da sua mulher como se pudesse ser a última vez (porque a morte, nas condições em que exerce o seu ofício, está sempre à espreita), até ao local de trabalho – a construção –, onde labora como uma máquina, erguendo «paredes sólidas / tijolo com tijolo», que lhe deixam os olhos embotados de cimento e lágrimas. Depois, uma pequena pausa para descansar como um príncipe, mas este nobre do povo banqueteia-se com a simplicidade de feijão com arroz e um gole de bebida, que o faz dançar e gargalhar sem música. Por fim, o desfecho dramático: um tropeção, uma queda pelos ares feito pássaro, um corpo estatelado no chão. «Agonizou no meio do passeio público/ Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.» Para as pessoas que passeiam nos seus automóveis, a morte de um trolha é apenas um contratempo; um corpo que tem de ser rapidamente retirado da estrada. E, para o patrão, o acidente daquele homem sem nome, igual a tantos outros, é apenas um estorvo; uma ferramenta que, de repente, tem de ser substituída por outro homem sem nome.
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Adriano Correia de Oliveira – Tejo que levas as águas (1975)
Chega a arrepiar que o poema escrito por Manuel da Fonseca há umas cinco décadas pareça que foi escrito ontem. Nesta cidade que o Tejo lava de mágoas, levando-as para o mar, há «roubos, fomes, terrores», bancos e empresas que são «comedores de dinheiro», praticando «salários de tristeza» para arrecadarem «lucro inteiro», e palácios e vivendas justapostos aos casebres dos bairros da lata. A voz de Adriano Correia de Oliveira anseia que o rio leve «negócios e rendas/ que a uns farta e a outros mata» e «o poder dos senhores/ que compram corpos e almas». Mas, será a torrente do Tejo capaz de carregar consigo tanta coisa?
Zeca Afonso – Os índios da Meia-Praia (1976)
No Algarve, ficou famosa a história da aldeia da Meia-Praia, ali mesmo ao pé de Lagos, a quem Zeca Afonso compôs uma cantiga do melhor que soube e fez. Era uma aldeia erguida por gente remediada, gente pobre, por famílias de pescadores. Os homens andavam na faina a noite inteira para só ganharem um pataco. Na lota, deixavam-nos mudos, exploravam-nos: «Chupam-te até ao tutano/ Chupam-te o couro cabeludo.» Zeca pedia que se tivesse valentia para defender a nobreza daqueles índios da Meia-Praia – a quem queriam embargar as obras, deitar as casas abaixo –, que houvesse quem os protegesse das burocracias e papeladas dos ministérios, dos tubarões de mil aparas que deixavam as presas à dependura, dos «mandadores de alta finança», a dizerem que o mundo só andava quando tinha à frente um capataz. Era preciso valentia para «esganar a burguesia», porque ali, naquela praia, construíra-se um sonho bonito.
Eram mulheres e crianças cada
Um com seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
Que diz o contrário é tolo
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Fausto – Uma cantiga de desemprego (1977)
Ao aproximar-se o final da década de 1970, uns anitos após o 25 de Abril, Fausto Bordalo Dias lançava uma canção sobre um desempregado, a fumar um cigarro deitado e a fechar a cortina da vida no mês de janeiro. A esperança lá renasce como uma primavera, em março, e o homem parte à procura de trabalho. Passa abril por um funil, passa a promessa de maio («porque esperar prometido/ nessa eu já não caio»), queimam-se os dias de junho e julho ao sol quente, e o verão, em vez de festa, traz um «sorriso de entulho» e jantares em silêncio. Com a esperança esvaída, setembro é mês perdido pelas esquinas. Pensa-se o menos possível no outubro que aí vem. Há um receio do outono que chega ainda sem se ter emprego, mas o nosso homem, por mais desiludido que esteja, não está disposto a baixar os braços. «Sinto força em novembro/ juro luta em dezembro». E nós desejamos que ele chegue a um novo janeiro já a poder usar na lapela o orgulho de ter o seu trabalho.
Deolinda – Parva que eu sou (2011)
Um salto no tempo para aterrarmos numa música que se tornou uma espécie de hino de uma geração «sem remuneração», dos jovens que já têm sorte se puderem estagiar, num mundo que está mal e assim vai continuar, um mundo tão parvo «que para ser escravo é preciso estudar». Quando à voz de Ana Bacalhau, nos concertos, se juntam vários milhares de outras vozes anónimas, ou as palmas e os assobios irrompem a meio da cantiga, é porque a letra toca fundo e, neste caso, faz mais sentido do que aquilo que gostaríamos que fizesse. É o grito de quem é obrigado a viver na “casinha dos pais”, com o carro ainda por pagar, a ter de adiar os planos de juntar-se a alguém e ter filhos. Continuaremos assim durante muito mais tempo?
Sou da geração 'vou queixar-me para quê?'
Há alguém bem pior do que eu na TV.
Que parva que eu sou!
Sou da geração 'eu já não posso mais!'
Que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou!
E fico a pensar,
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar.
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