Os filmes sobre catástrofes têm um longo historial na Sétima Arte, sendo que a destruição de edifícios, carros, estradas por vezes têm sido obra de gorilas gigantes (o King Kong original remonta a 1933) ou de monstros que parecem saídos da era dos dinossauros (o Godzilla vindo do Japão, corria o ano de 1954). Neste devastar de cidades inteiras, porém, nada como terremotos, maremotos, vulcões, tornados e outras manifestações extremas da Natureza. E o cinema sul-coreano já nos habituou a encontrar sempre uma forma de pegar em velhos temas e servi-los de formas inovadoras.
Em Concrete Utopia (2023), o apocalipse surge através de um terremoto que faz desabar uma floresta de prédios de cimento. Sem nunca ser nomeada, presume-se que seja Seul, a capital sul-coreana, a cidade que fica totalmente arrasada. O título alternativo que outros países decidiram aplicar ao filme (“Sobreviventes – Depois do Terremoto”) remete diretamente para a luta pela vida que os sobreviventes terão de travar, mas a razão de trazermos este filme aqui não é propriamente o lado do thriller. É que, se muitos filmes catástrofe vivem somente das cenas de ação, também existem vários exemplos dentro do género que, no subtexto, permitem leituras mais abrangentes.
A utopia dos gigantes de cimento
É o caso desta “utopia de cimento”, assim apresentada logo nos primeiros minutos do filme, bem ilustrativos das tendências do setor imobiliário nalguns países. Se, até certa altura, ter um apartamento era um passo inicial para a aspiração de se ter uma moradia, lá veio o tempo em que o objetivo final passou a ser a posse de um apartamento. E com a aspiração de subir de nível, ou seja, de mudar para um apartamento mais espaçoso, com mais quartos, com melhor vista, num melhor bairro. Provavelmente ainda estaremos a viver sob este paradigma, quer dizer, à exceção deste Concrete Utopia, onde só ficou de pé o condomínio Palácio Imperial.
Será nesses blocos inabaláveis que os residentes se irão confrontar com vários dilemas morais. Deve franquear-se os portões aos sobreviventes do exterior ou deixá-los lá fora, condenados a morrerem ao frio? A comida amealhada deve ser distribuída por igual ou de acordo com o esforço de cada um (mesmo que uns sejam novos e aptos e outros velhos e incapazes)?
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Se sou proprietário, tenho mais direitos
Por entre as inúmeras peripécias e volte-faces vividos entre os escombros ou dentro do condomínio – que não queremos revelar demasiado –, percebe-se a perda do conceito de vizinhança nestes arranha-céus de aço e cimento, enquanto emergem preconceitos como a diferenciação do estatuto dos inquilinos; os quem são proprietários da sua fração apontam logo o dedo acusador a quem só consegue estar ali com recurso a um crédito bancário… Serão eles detentores dos mesmos direitos? Ou serão uma espécie de sub-raça do Palácio Imperial?
Aos poucos, a pretensa utopia instalada naquela comunidade acabará por fazer lembrar o regime nazi. A ideia da sobrevivência a todo o custo impõe-se, através do culto de um líder autoritário e incomplacente, de um regulamento que prevê punições severas para os incumpridores, de uma nova forma de ver o mundo. É a “selva” que está para além dos limites do condomínio e que é habitada pelos “selvagens”; são as “baratas” (os humanos não residentes) que se infiltram dentro do condomínio e que é preciso caçar e exterminar.
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Mais andares, mais perto do paraíso?
Quase sem darmos conta, esta tensa batalha física e psicológica entre os habitantes do Palácio Imperial vai-se desenrolando em cenários a que estamos bem acostumados: as arcadas e corredores que calcorreamos para entrar em casa, as salas onde vemos televisão, os quartos onde dormimos. Como se um prédio pudesse ser, afinal, uma zona de guerra. Uma casa, se calhar, será sempre uma casa, seja num apartamento ou numa moradia. Mas será depois de muito drama e violência, depois de várias mortes e sacrifícios, que uma das protagonistas acaba por descobrir que a tipologia talvez não seja o mais importante de tudo. Talvez o mais importante esteja sempre nas pessoas. Talvez o mais importante seja o espírito de comunidade que se consiga construir entre todos os que partilham um prédio, uma rua, um quarteirão, um bairro. A utopia de morar num paraíso, se calhar, não será tanto uma questão de número de andares, ou de condomínios mais ou menos fechados ao exterior, mas sim do que desejem as pessoas que lá viverem.
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