Já todos ouvimos as notícias de que, em termos económicos, o mundo está cada vez mais dividido, com o fosso entre pobres e ricos a acentuar-se de ano para ano. Em tempos, chamava-se a isto luta de classes, e Snowpiercer (2013) pega precisamente no sistema de classes e leva-o ao extremo, aplicando-o ao contexto de um… comboio. A premissa não podia ser mais simples e visual. Num mundo congelado, os sobreviventes ocupam um comboio que trota a grande velocidade, sem nunca parar.
Classes distintas e sem misturas
Nesse único sítio em que a vida humana é possível, replicou-se um sistema económico já testado e comprovado. As classes mais baixas vivem nas carruagens do fundo, em condições desumanas – falta de espaço, escassez de comida, condições higiénicas deploráveis, ambiente gélido, etc; as classes dominantes, pertencentes a um regime totalitário, vivem nas carruagens da frente, com todos os luxos e mordomias que podem existir num mundo pós-apocalipse.
A separação entre uns e outros faz-se por portas estanques e intransponíveis. É como se a classe líder do regime tivesse imposto um sistema de castas. Eu sou um chapéu, vocês são sapatos; eu pertenço à cabeça, vocês pertencem ao pé. Os extremos nunca se poderão tocar. E será da miséria mais abjeta que surgirá o ímpeto de contrariar o domínio dos mais fortes. Para quem está na cauda (do comboio e, portanto, da civilização), só resta um caminho: avançar para a carruagem seguinte, em busca de comida para os filhos, em busca de ar mais puro, em busca de mais uns centímetros de espaço que lhe permitam não estar sempre encavalitado no vizinho do lado.
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Aviso: Um filme de ação pode conter uma mensagem
Perante a opressão das armas, dos apertados sistemas de segurança, dos mecanismos que impedem que as pessoas possam melhorar a sua vida através do esforço do trabalho, esta ascensão social – aqui representada horizontalmente, ao invés do habitual “de baixo para cima” - terá obrigatoriamente de ser feita em luta. Com violência. Com sangue. Com mortes. Nesta distopia, não existe outro meio de mudança para além da revolução.
Uma revolução que só poderá ser bem-sucedida se os “habitantes” mais pobres do comboio souberem aliar-se uns aos outros. Se souberem ver no vizinho não um competidor pela escassa comida, mas um parceiro na obtenção de mais e melhor comida. E é assim que Snowpiercer, saído da mente de Joon-ho Bong – o mesmo realizador do oscarizado Parasites (2019) – se transforma numa parábola sobre a solidariedade entre iguais. Só a união fará a força, neste shot de adrenalina que se espera que nunca deixe de ser apenas um filme. O diacho é que já deixou. Houve um antes, a novela gráfica francesa Le Transperceneige, e um depois, com uma série televisiva de várias temporadas. Como se o ciclo dos ricos e dos pobres, no fundo, nunca pudesse acabar.
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Os ricos? Ah, vivem lá em cima
Ainda no reino das distopias, encontramos Elysium (2013). Neste filme, menos interessante em termos cinematográficos, mas ainda assim merecedor de ser chamado para este texto, somos remetidos para um futuro longínquo, no qual a humanidade está dividida em duas classes: os super-ricos e os… outros. Que novidade, certo? Pois bem, saiba-se que no ano de 2154 as elites já nem sequer vivem na terra, mas sim a bordo de uma luxuosa estação espacial. Generosos, os milionários deixaram o planeta arruinado para o resto das pessoas, sem com isso deixarem de explorar o seu trabalho. A trama, neste caso, desenvolve-se sobretudo em redor do confronto entre as personagens de Matt Damon e Jodie Foster, um a lutar (heroicamente) por uma maior igualdade, a outra a defender por todos os meios o statu quo dos ricalhaços. Por ser uma batalha demasiado esquemática, entre “o bom” e “o mau”, o filme perde a possível mensagem de união de esforços que encontramos em Snowpiercer. Mas os primeiros minutos chegam e sobram para visionarmos como poderá ser, no futuro, a divisão entre os que vivem paradisicamente no Elísio celestial e os que labutam pela existência no inferno terrestre.
E talvez seja essa a imagem de supremo contraste que venha a perdurar nas nossas memórias.
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