Talvez uma das maiores qualidades da trilogia começada com A Lei do Mercado (La Loi du Marché, 2015), prosseguida com Em Guerra (En Guerre, 2018) e finalizada com Um Outro Mundo (Un Autre Monde, 2021) seja a de nos apresentar variações sobre o mesmo tema. A viagem pelo mundo moderno do trabalho até começa pelo ângulo mais esperado: um operário que, aos 51 anos, se vê numa situação de desemprego e sem qualquer perspetiva de encontrar um novo posto adequado à sua especialização. Depois, Lindon assume a pele de um sindicalista que luta por manter os postos de trabalho de uma fábrica que o patronato quer fechar. Finalmente, no terceiro e mais arriscado tomo, a câmara foca-se literalmente noutro mundo: o dos gestores de topo.
O sistema faz o homem ou o homem faz o sistema?
Independentemente do ângulo nesta pirâmide hierárquica das empresas, os três filmes comungam da mesma sensação claustrofóbica: as personagens surgem-nos sempre metidas num colete-de-forças, obrigando-as a ações contrárias aos seus valores e vontades. Até onde temos de descer para manter um emprego? Até perdermos a própria dignidade? Até nos tornarmos violentos, combatendo a nossa natureza pacífica? Até cortarmos os laços afetivos com os outros seres humanos para nos transformarmos num robô insensível? Em vez de apontar o dedo inquisidor às pessoas, Brizé prefere desmascarar o sistema, evidenciando as regras perversas do jogo, instituídas por entidades quase invisíveis e inacessíveis (veja-se o todo-poderoso CEO do grupo Elsonn, em Um Outro Mundo), mas cuja palavra é reverenciada como uma ordem divina.
Se bem que os filmes possam ser vistos de forma aleatória, a opção mais interessante será vê-los por ordem. Isso dará ao espectador a sensação de estar a subir os degraus na pirâmide hierárquica da empresa. E o extraordinário é que Vincent Lindon, apesar de ser sempre o principal intérprete, aparece-nos ajustado a cada nova personagem; nem por um minuto duvidamos dele como operário, sindicalista ou diretor, por mais que o tenhamos visto antes noutro papel. A opção de manter o ator força-nos precisamente a pôr de lado as noções maniqueístas (ao estilo “os bons contra os maus”), para aceitarmos que todos podemos ser coagidos. Até os cargos de topo podem ser mastigados e triturados por uma máquina bem oleada, capaz de despir cada funcionário dos seus princípios humanos, obrigando-os a serem pessoas que não desejam ser.
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Três cenários diferentes; uma realidade comum
Apesar das semelhanças, cada filme revela um conjunto de dilemas específicos. A Lei do Mercado testa o desespero de um homem de família que, após meses sem encontrar um emprego adequado às suas qualificações, aceita um cargo de controlador num supermercado, e se vê obrigado a denunciar um colega para continuar a receber o muito necessitado ordenado. Duro e implacável, o filme iniciava da melhor forma a futura trilogia, ao receber uma ovação da plateia, na estreia em Cannes, que se diz ter durado quase dez minutos. Na gala final, Lindon receberia o prémio de melhor ator, pelo seu desempenho numa obra que teve títulos alternativos como “O valor de um homem” ou “O preço de um homem” e que os internautas descrevem, no site do imdb, como uma história honesta e realista, capaz de nos dar «o retrato angustiante da crueldade banal do mundo do emprego moderno».
No filme seguinte, Brizé forçou ainda mais a barreira entre ficção e realidade, tanto pelos apontamentos cinematográficos ao estilo de reportagem, como pela escolha de um elenco em que Lindon era o único ator profissional; todas as restantes personagens foram desempenhadas por gente que, na sua atividade profissional, tivera ocupações semelhantes. Por isso, os diálogos e interações entre banqueiros, advogados, detentores de cargos políticos, empresários e sindicalistas parecem saídos de um documentário. E qual é a história de fundo? A mesma vista em tantos telejornais. Um grupo estrangeiro compra uma empresa francesa ligada ao setor automóvel. Os diretores e trabalhadores da empresa recém-adquirida aceitam reduções salariais, sob a promessa de assim manterem os seus postos durante um mínimo de cinco anos. Então, inesperadamente, chega a decisão superior de fechar a firma e enviar 1100 funcionários para o desemprego. Laurent Amadeo, o porta-voz dos trabalhadores, será o rosto da luta por manter a empresa em laboração.
Ver o gestor também como um ser humano
Há quem diga que o guião de Stéphane Brizé previu o aparecimento do movimento dos coletes amarelos em França. Porém, mais uma vez, o realizador tentou fugir das leituras superficiais, evidenciando diferentes pontos de vista – e contradições – entre os próprios operários. O sistema parece feito para quebrar a resistência por dentro; e, no filme, somos expostos aos argumentos convincentes daqueles que querem lutar por manter o posto de trabalho, seja a que custo for, mas também às razões válidas dos que preferem baixar os braços, receber a indemnização e seguir com as suas vidas. Pois bem, o ator Lindon fez isso mesmo: terminou o filme e seguiu com a carreira, até aterrar novamente num projeto de Brizé, desta vez para interpretar o papel de um executivo de sucesso.
Para humanizar a figura do gestor, Um Outro Mundo explora mais profundamente os conflitos familiares (também presentes nos filmes anteriores). Logo de entrada, vemos o protagonista imerso num processo de divórcio com a mulher (desfecho em grande parte derivado da pressão e exigência do seu trabalho), e alheado dos problemas do filho. Será nesse cenário de tumulto pessoal que os patrões de Philippe Lemesle vão obrigá-lo a mudar de estratégia de gestão: em vez de executivo compreensivo e aliado dos trabalhadores, ele terá de transformar-se num homem capaz de impor, sem escrúpulos, as novas orientações da empresa. Que fará ele? Ou melhor: que poderá ele fazer? Haverá espaço, nos dias de hoje, para um chefe humanista?
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Perguntas que todos podemos fazer a nós mesmos
Numa entrevista ao sítio Rue89 Strasbourg, Brizé concorda que Philippe foi a personagem mais difícil de construir das três interpretadas por Vincent Lindon. Era preciso que o espectador compartilhasse a questão moral de alguém que, de repente, podia ser levado a fazer o mal. Philippe, no fundo, não é um patrão; ele tem uma autoridade superior no dono da empresa. De repente, perante a obrigação de cortar custos e postos de trabalho, ele tem de confrontar-se com os seus limites. Se antes conseguira sempre encontrar uma solução, mesmo que à custa do sofrimento dos empregados, da sua família, dele próprio, agora apenas esperam dele que seja um simples executor de ordens. «A maior dificuldade dele é aceitar que ele não é o problema, mas que está preso», salienta Brizé.
Para convocar um maior realismo, o realizador falou com pessoas que passaram por situações semelhantes durante as suas vidas profissionais. Foram essas histórias de saídas involuntárias, de negociações duras e esgotantes, de tensões acumuladas, que ajudaram à escrita do argumento. A digestão dos acontecimentos nem sempre era igual; se uns saíam aliviados dessas entrevistas, outros saíam amargurados. Usavam-se termos associados a separações amorosas e algumas pessoas diziam-se injustiçadas por terem sacrificado tudo, inclusive a sua vida pessoal, por uma empresa que depois lhes dera como paga a indicação da porta da saída. Todas essas emoções eram o foco de Stéphane Brizé. «Estou interessado no ser humano», diz. Por isso, as questões que ele se coloca, e que transpôs para a sua trilogia, podem muito bem ser as perguntas que cada um de nós tem para fazer e responder: «Como é que nós, homens e mulheres, nos pomos em causa quando estamos inseridos num sistema que nos constrange? Qual será a nossa reação? O que estaremos dispostos a sacrificar?»
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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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