Optei por abordar os regimes do Golden Visa e do residente não habitual isoladamente, separados do capítulo dedicado à procura, face à sua especificidade e impacto mediático.
Infelizmente, esta mediatização não aconteceu sem uma polarização acentuada entre aqueles que, de alguma forma, valorizam estes instrumentos como dinamizadores de uma economia sã e os que lhes apontam efeitos nefastos para o acesso à habitação. Duas posições legítimas que, no meu entender, têm promovido um debate assente em interesses económicos e preconceitos ideológicos.
Na apresentação deste Especial Habitação comprometi-me a fazer um conjunto de reflexões com independência e isenção. Algo que só é possível com transparência.
Antes de iniciar este capítulo é importante lembrar que sou consultor imobiliário. E que, em 2021 e 2022, respetivamente 46% e 21% dos meus rendimentos foram obtidos através da representação de compradores que fecharam investimentos imobiliários, através dos quais requereram a Autorização de Residência para Atividade de Investimento, os chamados Golden Visa.
Dito tudo isto, reafirmo a minha isenção e independência para o redigir esta análise. Cabendo obviamente ao leitor fazer essa apreciação.
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O que é o Golden Visa?
O regime de Autorização de Residência para Atividade de Investimento (ARI), vulgo Golden Visa, permite a cidadãos nacionais de outros Estados, mediante uma atividade de investimento:
- Entrar em Portugal com dispensa de visto de residência;
- Residir e trabalhar em Portugal, devendo, no mínimo, permanecer em Portugal por um período não inferior a sete dias no primeiro ano, e não inferior a catorze dias nos anos subsequentes;
- Circular pelo Espaço Schengen, sem necessidade de visto;
- Beneficiar de reagrupamento familiar;
- Solicitar a concessão de Autorização de Residência Permanente nos termos da Lei de Estrangeiros;
- Poder vir a adquirir a nacionalidade portuguesa, por naturalização, se cumpridos os demais requisitos exigidos na Lei da Nacionalidade.
Essa atividade de investimento podia acontecer por via de oito modalidades distintas, duas das quais através da aquisição de imóveis:
- Aquisição de bens imóveis de valor igual ou superior a 500.000 euros. Quando localizado em territórios de baixa densidade, o investimento poderia ser feito a partir de 400.000 euros (-20%);
- Aquisição de bens imóveis, cuja construção tenha sido concluída há pelo menos 30 anos, ou localizados em área de reabilitação urbana, e realização de obras de reabilitação dos bens imóveis adquiridos, no montante global igual ou superior a 350 mil euros. Quando localizado em territórios de baixa densidade, o investimento poderia ser feito a partir de 280.000 euros (-20%).
Pessoalmente, tenho pouca simpatia pela ideia de se pagar para obter um visto, e menos ainda para se poder adquirir uma dada cidadania. Dito isto, há um contexto para a criação dos Golden Visa que deve ser tido em consideração.
Como e quando aparece este regime?
O regime dos Golden Visa entrou em vigor a 8 de outubro de 2012.
É importante lembrar que, em 2011, o descontrolo da dívida soberana e o aumento dos juros estrangulavam Portugal. E que esse contexto havia forçado a demissão de um primeiro-ministro e um pedido de ajuda financeira externa. Que foi responsável pela presença em Portugal, até maio de 2014, de uma comitiva formada por representantes do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do Fundo Monetário Internacional.
O novo Governo estava obrigado a cortar na despesa e a encontrar novas fontes de receita.
A verdade é que em poucos anos, Portugal passou de um país num cenário de pré-bancarrota, onde parecia pouco seguro colocar o dinheiro, para as primeiras páginas dos cardápios de investimento.
Essa mudança deve-se a um conjunto de medidas (algumas levadas a cabo pelo Banco Central Europeu) e à crescente visibilidade que o país vinha ganhando. O que impactou a perceção que existia sobre o país, a sua capacidade para fazer face à dívida externa e o dinamismo da sua economia. E sim, de alguma forma os Golden Visa são parte dessa transformação.
A informação mais percetível decorrente da análise do gráfico acima é que a esmagadora maioria dos Golden Visa (89,5%), foram concedidos a investidores imobiliários.
Este é para mim o primeiro tema que deve ser discutido: era esta a intenção dos promotores do diploma que introduziu a figura dos vistos Gold?
Se o propósito era dinamizar o mercado imobiliário parece ter resultado na perfeição. Se, por outro lado, se esperava gerar um número significativo de postos de trabalho, o resultado é obviamente desapontante. Sem objetivos claros e bem definidos, é difícil fazer balanços, e pensar em eventuais ajustes ou melhorias.
Note, por favor, que há um desfasamento temporal entre o momento em que o investimento é feito (no caso da compra de imóveis, através da celebração de contrato ou contrato-promessa de compra e venda), e a concessão do visto.
Ou seja, o facto de se poder atingir o número recorde na concessão de Golden Visas em 2023 (o valor do gráfico referente a este ano reporta as autorizações de residência concedidas entre janeiro e setembro), não significa que tenha ocorrido um valor avultado deste tipo de investimentos durante este ano.
Só para lhe dar uma referência temporal: nenhum dos meus clientes que realizou investimentos no segundo semestre de 2021, obteve o visto antes do quarto trimestre de 2023.
Mais, estou fortemente convencido de que a subida do número de Golden Visas concedidos em 2023, se deve a um pico de aquisição de casas em Lisboa durante o ano de 2021. E porquê?
Porque a 12 de fevereiro desse ano foi publicada em Diário da República uma alteração à lei cuja alteração mais relevante foi a seguinte:
A partir de 1 de janeiro de 2022 deixava de ser possível requerer uma ARI por via da aquisição de casas, em grande parte da faixa litoral de Portugal Continental.
Isto significa que se alguém quisesse investir em imóveis localizados na área metropolitana de Lisboa ou no concelho do Porto, teria de o fazer através da aquisição de uma propriedade não residencial.
Quais as principais nacionalidades?
2022 foi o único ano em que o maior número de Golden Visas não foi atribuído a cidadãos chineses, tendo estes obtido menos três vistos que os cidadãos dos EUA, país que em 2023 deverá voltar a liderar o número de autorizações de residência.
Imobiliário é relação
Dito isto, só para ter uma ideia, dos 12.718 Golden Visas concedidos entre outubro de 2012 e setembro de 2023, 5.401 (42,5%) foram atribuídos a cidadãos chineses. Ascendente que era ainda mais evidente nos anos iniciais do programa: até 2016 esta nacionalidade representava 72,6% do total de vistos concedidos.
Porque é que esta informação pode ser importante? Já ouviu falar de casas compradas por titulares de vistos Gold que permaneceram fechadas? Ou de condomínios sub-ocupados? Este é um fenómeno cuja grandeza não é possível quantificar, mas que pode estar associado a barreiras na comunicação e à falta de transparência de alguns atores locais.
Não há dados sobre estas ocorrências, mas é comentado entre mediadores e agentes imobiliários que, numa fase inicial, se venderam casas por 500.000 euros a cidadãos chineses, que estariam disponíveis no mercado por valores inferiores.
Ou seja, imóveis que num mercado transparente e informado dificilmente teriam sido transacionados por meio milhão de euros. Mas que, apresentados a pessoas que não falavam português nem inglês, mal assessorados e com dificuldades em consultar o mercado, tenham sido adquiridos por estes valores. Uma página negra na história da mediação imobiliária, com a qual ninguém se parece preocupar muito.
Imagino que episódios como estes (cuja representatividade creio ser reduzida), possam ter contribuído para algumas quebras de confiança e relutância em colocar as casas no mercado de arrendamento. Obviamente, que este não é o seguimento desejável para um programa desta natureza que, nestes casos, gera dois efeitos nefastos para o mercado residencial: aumenta os preços artificialmente, e prejudica a oferta de habitação para arrendamento.
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Onde ficam os imóveis?
O gráfico abaixo reporta-se a 2021 e 2022, e compara o número total de vistos concedidos, com o número de aquisições de imóveis nos cinco municípios que atraíram mais investimento por esta via, que o jornal ECO apurou junto do SEF. Resultados muito idênticos aos publicados num artigo do jornal Público, que assegura – também com base em dados fornecidos pelo SEF – que 55% dos Golden Visa concedidos, entre janeiro e setembro de 2019, se reportavam à aquisição de imóveis no concelho de Lisboa.
A ideia geral é a de que cerca de 50% dos Vistos Gold concedidos entre todas as modalidades de investimento disponíveis desde 2012, terão resultado da compra de imóveis no município de Lisboa. Ou seja, o programa terá gerado mais aquisições de casas em Lisboa do que nos restantes 307 municípios de todo o país.
A análise que falta fazer
O Golden Visa é uma modalidade de investimento que obriga o cidadão estrangeiro a estar entre uma a duas semanas por ano em Portugal. Ou seja, este instrumento de captação de investimento estrangeiro não implica uma ligação forte entre o investidor e Portugal.
Por outro lado, das oito modalidades possíveis de investimento, pelo menos metade parece exigir bastante mais estudo e dedicação que as demais: criar 10 postos de trabalho, investir 500.000 euros em atividades de investigação científica, investir 250.000 euros na produção artística ou recuperação do património cultural, ou constituir uma sociedade e criar cinco postos de trabalho.
Sejamos francos: transferir 1,5 milhões de euros para uma aplicação financeira em Portugal, ou comprar um imóvel por 500.000 euros, parecem formas bastante mais simples de se investir num país estrangeiro. Principalmente, se a coisa mais importante que se pretende obter for uma autorização de residência que lhe permita circular livremente pelo espaço europeu.
E, se por um lado, abrir uma conta em Portugal e fazer uma transferência bancária é mais rápido que comprar um imóvel, 1.500.000 euros é o triplo de 500.000 euros...
É importante estarmos conscientes de que o desenho deste veículo de investimento não parece ter promovido a atração de pessoas que procurem um envolvimento com o país, ou fazer investimentos que não possam ser revertidos com relativa facilidade.
Todas as semanas leio um artigo em que alguém lembra os 6,5 mil milhões de euros de investimento estrangeiro pelos quais os Golden Visa são responsáveis. Mas qual será o real valor acrescentado para a nossa economia, de um tipo de investimento que se traduz essencialmente em transferência de propriedade?
Perante uma procura de habitação tão forte face à oferta disponível, parece consensual dizer que aqueles que venderam os imóveis, acabariam por o fazer sem o contributo destes investidores. E que a receita fiscal correspondente iria aparecer, mesmo que um pouco mais tarde ou por valores inferiores.
Por isso, quando falamos de investimento estrangeiro, é importante tentarmos entender o valor acrescentado que ele gera. Da mesma forma que quando se fala do impacto negativo na habitação, é necessário perceber onde é que esse efeito acontece realmente.
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Quem diz a verdade?
Um sector imobiliário que grita em coro que o número de vistos Gold gera investimento, mas não tem impacto nos preços da habitação? Ou a uma fação do espectro político, que acusa o arco da governação de promover a especulação imobiliário, e dificultar o acesso à habitação?
Primeiro ponto, num país que vive uma crise de acesso à habitação parece-me elementar reconhecer que, à partida, não parece ter sentido promover a emissão de vistos por via da compra de casas. E não concordo com a alegação de que a crise de habitação é fruto da subida das taxas de juro.
Os desafios relativos à habitação já vinham sendo amplamente discutidos. E há já alguns anos que existe, por assim dizer, uma consciência coletiva de que a evolução dos preços das casas não é acompanhada pelos rendimentos das famílias.
Segundo ponto, é difícil de imaginar que os Golden Visa tenham tido um impacto realmente significativo nos preços da habitação em outros municípios que não o de Lisboa. Ainda que não considere despiciendo o efeito contágio – num "mercado de vendedores", potenciado pelas taxas de juro baixas, em que a procura pelos ativos é superior à oferta – que essa expetativa de preços possa ter exercido nos concelhos vizinhos.
Em todo o caso, não creio que seja realista a ideia, segundo a qual tudo se resolveria pelo impedimento da concessão de visto a investidores em imóveis residenciais localizados na capital. O efeito mais expectável dessa medida seria a migração dessa pressão habitacional para Cascais, Oeiras, ou Sintra.
A verdade é esta: se tiver intenção de vender uma casa cujo valor de mercado esteja estimado na ordem dos 400.000 euros/450.000 euros, e souber da existência de um programa de investimento como o Golden Visa, é muito provável que coloque o imóvel no mercado por um valor igual ou superior a 500.000 euros.
Nenhum agente económico (seja uma empresa cotada em bolsa ou um cidadão particular) quer vender por quatro aquilo que acha que alguém poderá comprar por cinco. E ninguém é pior pessoa por procurar fazer um melhor negócio.
A responsabilidade é do Estado. Que deveria assegurar a monitorização de um programa de investimento que, em 2012, fixou um montante mínimo de aquisição de 500.000 euros. Que à data, parecia estar longe de impactar os valores de mercado da classe média; segundo o Instituto Nacional de Estatística, no segundo trimestre de 2012, o valor médio de venda de uma casa em Portugal era de pouco mais de 105.000 euros e um pouco inferior a 138.000 euros na Área Metropolitana de Lisboa.
Até porque, em 2012, voltando ao contexto do aparecimento deste programa, o problema de muitas pessoas era, precisamente, a desvalorização da sua casa. Recordo que em 2012 vivíamos tempos de "austeridade" (eleita palavra do ano em 2011): o desemprego tinha disparado, e o salário médio nacional estava estagnado.
E alguns daqueles que enfrentavam dificuldades em pagar a casa não conseguiam liquidar a dívida ao banco através da sua venda porque, com créditos a financiar 100% do valor da avaliação do imóvel, e as casas a registar desvalorizações sucessivas, o resultado da venda poderia não ser suficiente para liquidar a hipoteca ao banco.
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Em que ficamos?
A questão não é tanto deliberar se os Golden Visa são bons ou maus. O mais importante é ter presente que as medidas geram oportunidades e riscos. E que o seu acompanhamento é essencial para prevenir o aparecimento de externalidades negativas.
É lamentável constatar que os responsáveis governamentais que hoje se orgulham de ter anunciado o fim dos vistos Gold (o que também não é exatamente verdade), sejam os mesmos que não se obrigaram, ano após ano, a monitorizar devidamente o programa.
E que não olharam para os dados disponibilizados pelo SEF e não perceberam que cerca de 90% do investimento foi canalizado para a compra de imóveis (presumivelmente, a grande maioria deles propriedades residenciais), e que mais de 50% destas aquisições ocorreram em Lisboa.
Se isso tivesse sido feito, estou seguro de que meia dúzia de anos depois do programa ter início já alguém teria sugerido que o valor mínimo para investir num imóvel residencial aumentasse, por exemplo, para 750.000 euros ou 1.000.000 euros. Ou que o investimento em habitação ficasse circunscrito à reabilitação urbana. O investimento seria inferior? Mas não teria desaparecido entretanto. E assegurávamos que era o investimento estrangeiro a servir o país e não o contrário.
Estes são apenas dois exemplos de como se poderia proteger o programa – num cenário que nem excluiria da equação o segmento residencial – com uma mitigação muito significativa dos seus riscos para o mercado habitacional. Assegurando que a classe média não fosse prejudicada ou circunscrevendo este tipo de investimento a uma modalidade que gera impactos mais visíveis na economia: porque a reabilitação de um imóvel cria valor.
Pode transformar um espaço insalubre num lar, gera consumo e emprego, e assegura a prestação de muitos serviços, para lá da assessoria jurídica e imobiliária.
Entendo que manter o programa dos vistos Gold como foi desenhado em 2012 seria, socialmente falando, quase criminoso. E um atentado, aos olhos de todos os residentes (nomeadamente os lisboetas), para quem o fruto do seu trabalho não lhes permite viver em condições dignas.
Riscar por completo o investimento em imóveis, com a justificação, apenas parcialmente verdadeira, de que penaliza os preços da habitação, é um testemunho da falta de transparência do discurso político. Mais não seja pelo mais óbvio dos motivos: o investimento em escritórios ou lojas não é diretamente responsável pela subida dos preços das casas.
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Consultor imobiliário na KW e especialista no mercado residencial da Grande Lisboa, é autor do blogue A House in Lisbon e da série Minuto Imobiliário. Nascido em Lisboa e formado em Sociologia, foi gestor no BES, assinou o blogue O Alfaiate Lisboeta, e foi cronista no Dinheiro Vivo, Expresso, Metro e GQ.
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