Vida e família

O horror por detrás de uma pele bem tratada

Dois monstros a alimentarem-se de Wall Street: um deles um verdadeiro psicopata; outro um mero oportunista; ambos com um profundo desprezo pelas vidas alheias.

Dois monstros a alimentarem-se de Wall Street: um deles um verdadeiro psicopata; outro um mero oportunista; ambos com um profundo desprezo pelas vidas alheias.

Comecemos de mansinho, pelo menos violento. Em Money Monster (O Jogo do Dinheiro, 2016), realizado por Jodie Foster, o ator George Clooney interpreta uma espécie de mago de Wall Street. No seu programa televisivo, Lee Gates oferece dicas de investimento e comenta as evoluções dos mercados. Mas o melhor é ser ele a apresentar-se: "O meu nome é Lee Gates, o show chama-se Money Monster. Sem risco, não há recompensa. Devo vender? Devo fazer um empréstimo? VÊ LÁ SE GANHAS TOMATES!" O estilo do apresentador é assim mesmo, agressivo, direto ao assunto, sem contemplações; ele é uma espécie de boxeur que sabe como dar os socos certos no mercado bolsista.

Poster do filme money monster

Dinheiro a mil à hora

Lee Gates exige que estejamos atentos. Como as coisas vão ficar mais complicadas, vai falar de forma pausada e simples. Para que nós, os menos espertos, possamos compreender. "Não fazes ideia de onde está o teu dinheiro. Repara, em tempos idos, podias entrar num banco, eles abriam o cofre-forte e apontavam para um lingote de ouro. Mas já não é assim. O teu dinheiro - aquilo por que te matas a trabalhar - não passa de uns quantos fotões de energia a viajarem através de uma gigantesca rede de cabos de fibra ótica. Porque é que fizemos isto? Fizemos isto para que viajasse mais depressa. E para teu bem, é melhor que o teu dinheiro seja rápido - mais rápido do que o dos outros tipos. Mas, se queres mercados mais rápidos, com transações mais rápidas, com lucros mais rápidos, com tudo mais rápido, às vezes vais acabar com um pneu furado."

Pois é, nem sempre os gurus financeiros acertam, mas a culpa não é deles: é da rapidez do sistema. Um ligeiro despiste faz parte das regras do jogo de quem investe na bolsa. Porém, um dos lesados, não pensa bem assim. Para ele, o furo equivaleu a uma perda enorme. Foi como se o seu carro se tivesse despenhado, com ele dentro. Desesperado, pega numa pistola e invade o estúdio. Kyle Budwell (Jack O’Connell) sente-se enganado por Lee Gates, mas não quer matar ninguém. Ao fazer do apresentador seu refém, obriga a que o programa se mantenha no ar: ele quer ser ouvido. Quer tempo de antena para dizer que os verdadeiros criminosos são aqueles que roubam o dinheiro às pessoas. Através de esquemas, fraudes, estratagemas. Através de cálculos manipulados, equações reescritas, controlo da informação.

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Os “erros” dos outros que nos tramam a vida

Kyle seguira a sugestão de comprar ações de uma empresa que perdera 800 milhões da noite para o dia. Que justificação para tão grande e inesperado tombo? Uma falha informática. Bastara isso para lesar milhares de acionistas, mas um deles ali estava, à frente das câmaras, para ser porta-voz de quem trabalha por um ordenado que mal dá para pagar as despesas. Desta vez, Wall Street tinha de ser denunciada por funcionar como um casino que brinca com o dinheiro das pessoas. Desta vez, alguém tinha de assumir que fez algo de profundamente errado. Desta vez, alguém tinha de reconhecer que fora dado um golpe nas poupanças dos pequenos investidores.

O resto de Money Monster desenrola-se num registo de thriller, com reviravoltas que não queremos revelar. Por isso, passamos para o outro monstro. E este é mesmo monstruoso, com direito a avisos sobre violência extrema (e linguagem abusiva, uso de drogas, sexualidade desabrida…). Nem podia ser de outra forma, pois American Psycho (Psicopata Americano, 2000) é a adaptação cinematográfica do polémico romance de Bret Easton Ellis, cujo protagonista é um rico executivo de um banco de investimento nova-iorquino.

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Boas roupas, cremes hidratantes, playlist variada

Aparentemente, não há nada de estranho em Patrick Bateman, um jovem adulto rico e com gosto por roupas de marca. Entre os seus amigos, ou com a sua namorada, tanto o vemos dedicar-se a meditações sobre a carreira de bandas e artistas (dos Genesis e Phil Collins até Huey Lewis and the News, passando por Whitney Houston, o filme funciona como um palco giratório para a música da década de 1980), como que a avaliar comparativamente os cartões de visita de cada um, face à gramagem, fonte, subtileza de cor de fundo, marcas de água…

poster do filme american psycho

Estamos perante um homem profundamente meticuloso e bastante aplicado. Querem saber qual é a sua rotina matinal? "Tenho 27 anos. Acredito na ideia de cuidar de mim e de manter uma dieta equilibrada e um plano rigoroso de exercício físico. De manhã, se a minha cara estiver um pouco inchada, cubro-a com um saco de gelo enquanto faço abdominais. Agora consigo fazer 1.000. Depois de tirar o saco de gelo, uso um creme de limpeza dos poros. No duche, uso um gel de limpeza ativado pela água, depois um exfoliante corporal de amêndoa e mel, e um gel exfoliante para a cara. Depois, aplico uma máscara facial de ervas e hortelã que deixo ficar por 10 minutos enquanto preparo o resto da minha rotina. Uso sempre uma loção aftershave com pouco ou nenhum álcool, pois o álcool seca a cara e faz-nos parecer mais velhos. Depois vem o hidratante, um bálsamo antienvelhecimento para os olhos e, finalmente, mais um creme protetor hidratante."

E que faz este Patrick Bateman tão em forma, e com a cara tão bem tratada, nas suas horas vagas? Dedica-se a aprofundar a espiral das suas fantasias hedonísticas, cada vez mais violentas e sem limites. Já se disse que o género deste filme junta o drama, o crime e o terror?

O olhar oco e inesquecível de Patrick Bateman

A realizadora Mary Harron revelou que Christian Bale, na busca de inspirações para retratar o psicopata, deparara com uma aparição de Tom Cruise no programa televisivo Late Show. Dessa presença retivera “uma simpatia muito intensa que tinha um vazio por detrás dos olhos”. Esse mesmo olhar alheado, associado aos diálogos fielmente retirados do romance e às cenas mais violentas – que até levaram algumas marcas de luxo a dissociarem-se do filme –, lançariam a personagem e o ator para a galeria dos famosos.

Patrick Bateman sintetizava tanto a necessidade de pertencer a algo, de integrar-se numa tribo (a tribo narcísica e competitiva de Wall Street), de marcar presença num dado momento histórico, como a profunda solidão desse universo oco. E é ele, no meio do seu egocentrismo, que nos confessa isso mesmo. "Tenho todas as características do ser humano: sangue, carne, pele, cabelo; mas não tenho uma única emoção que seja clara e identificável, exceto a ganância e a repulsa. Algo horrível está a acontecer dentro de mim e não sei porquê. A minha sede noturna de sangue transbordou para os meus dias. Sinto-me letal, à beira do frenesi. Acho que a minha máscara de sanidade está prestes a cair."

Quando vemos essa máscara a cair, quase desejamos não termos conhecido Patrick Bateman. Mas conhecemos, primeiro no livro, depois no filme. E nunca mais nos esquecemos dele.

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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.

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