Financiado por três fundações, eis um videojogo financeiro que está longe de ser simples. Nem podia. Integrado na categoria dos serious game (jogos sobre temas sérios), The Fiscal Ship lança-nos o tremendo desafio de gerir o orçamento federal dos Estados Unidos. O grande objetivo será levar este barco até uma rota sustentável (a pensar já num longínquo ano de 2049), mas o cenário apresenta-se tempestuoso.
Primeiro fazer isto, mas sem esquecer aquilo
A dívida federal atingiu níveis sem precedentes, face ao crescente desalinho entre receita e despesa. O envelhecimento da população também tem colocado pressão extra sobre os decisores políticos; como se podem conjugar prioridades governamentais – por exemplo, garantir o pagamento das pensões aos reformados - com as taxas atuais de impostos? Para além da meta da sustentabilidade fiscal, será preciso ainda pensar no tipo de país que se quer ter. Por isso, a vitória só pode ser assegurada por quem consiga encontrar a combinação certa entre políticas adotadas e valores defendidos MAIS a conclusão da árdua tarefa de equilibrar o orçamento. E será um obstáculo extra que tudo isto se faça em inglês? Afinal de contas, trata-se da América…
Antes de entrarmos no jogo, há vários avisos à navegação. Conceitos aparentemente simples, como a existência de um problema quando os gastos são maiores do que as receitas. E outros um pouco mais complexos e perturbadores, como o alerta de que a dívida dos EUA irá continuar a aumentar. "A determinada altura, ter demasiada dívida significará o abrandar do crescimento económico, taxas de juro mais altas, e o risco acrescido de uma crise financeira." E, no caso, é no jogador que recai a responsabilidade de mudar este cenário catastrófico.
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Um governo sustentado em promessas eleitorais
As decisões difíceis começam logo com a definição dos nossos objetivos governamentais. Podemos ser nós a escolher, de entre uma lista com várias hipóteses: investir no futuro, lutar contra as alterações climáticas, aumentar os impostos, proteger os idosos, reduzir a desigualdade, reforçar a rede de segurança social, emagrecer a administração pública... [Em ano de eleições, acrescentou-se a possibilidade de se escolher as prioridades dos candidatos Donald Trump e Joe Biden]. Também podemos pedir que escolham aleatoriamente por nós. Tomámos essa opção e calhou-nos o seguinte programa governamental:
- Restringir os benefícios (associados a pensões, saúde e outros);
- Cortar nos impostos;
- Reforçar a Segurança Nacional
Porque o videojogo se pretende pedagógico, há explicações disponíveis para cada objetivo. Por exemplo, a restrição de benefícios pode sintetizar-se através de três frases: "Todos temos de apertar o cinto"; "Promover uma maior autossuficiência"; "Um bom serviço de saúde não devia custar tanto". Não podia ficar mais claro. E que slogans poderíamos usar para a questão da Segurança Nacional? "Paz através da força"; "apoiar as nossas tropas"; "Proteger a nossa liderança mundial". Ou seja, mesmo que os objetivos não se coadunem propriamente com os nossos valores pessoais, conseguimos perceber as ideologias que estão por detrás de cada opção. E isso é meia porta aberta para o diálogo entre vários quadrantes.
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Assumir a pele de um governo inteiro
Depois... depois vem o jogo de fingir que somos um governo. Podemos escolher políticas a adotar em vários domínios, desde Artes e Cultura, Infraestruturas e Transporte, Segurança Social, Energia e Ambiente, até Trabalho e Emprego, Crianças e Famílias, Lei e Justiça, Educação, além de uma miríade de categorias de Impostos.
Algumas áreas têm poucas opções disponíveis (Agricultura e Comida só tem três), enquanto outras têm várias (a Saúde lista 18 medidas possíveis!). As nossas escolhas terão, antes de mais, de nos aproximar dos nossos três objetivos de governo. Cada medida é acompanhada por uma pequena explicação; também são apresentados argumentos a favor e contra (ou seja, estamos sempre a ver os dois lados da moeda). Da mesma forma, visiona-se facilmente o impacto de cada medida no equilíbrio orçamental, seja pelo aumento dos custos ou pela diminuição da despesa.
Com 16 setores diferentes e um total de quase 150 medidas ao nosso critério, há muito por aprender, explorar, testar em The Fiscal Ship. Certas políticas não podem ser escolhidas em simultâneo; certas políticas suplantam ou anulam outras; certas políticas ajudam um dos nossos objetivos, mas prejudicam outro. Ao escolher e acumular medidas, recebemos estrelinhas verdes (cada objetivo precisa de três estrelas para que se considere cumprido). Mas a missão do governante está longe de terminar quando este consegue respeitar as promessas feitas ao eleitorado. Ainda falta o mais difícil: equilibrar o orçamento, de forma a manter à tona o navio fiscal dos Estados Unidos.
A nossa solução do problema? Cortar, cortar, cortar…
A pergunta no ar, repentinamente, afunila-se numa única: onde vamos cortar? Lá fomos clicando aqui e ali até conseguir nivelar o orçamento. Após o feito, acho que houve um sorriso. Missão cumprida. Depois, lá fomos rever o documento com as três dezenas de medidas aprovadas pelo nosso governo. Notámos logo a predominância das começadas por “cortar”, “eliminar”, “reduzir”, “abrandar”, “apertar”, “evitar”, “limitar”, “desencorajar”.
Poupámos dinheiro nas ajudas à alimentação dos mais pobres, nas bolsas para estudantes, nos vouchers de habitação, nos auxílios à compra de medicamentos, nos subsídios aos combustíveis renováveis. Não fizemos nada para contrariar a crise dos opioides; cortámos horrores no setor da Saúde. Deixámos de apoiar o Banco Mundial e suspendemos toda a ajuda externa. Várias instituições de pesquisa científica ou do campo das artes ficaram sem fundos. Enfim, cortou-se quase em tudo em que se podia cortar.
Eis uma vitória com sabor bem amargo. Haveria uma forma menos agressiva de atingir os resultados exigidos? Decididamente, esta experiência de comandar os destinos de uma nação talvez ajude a encararmos os governantes com um olhar mais compreensivo. E isso, num mundo cada vez mais polarizado, sempre em busca da nova polémica ou do novo bode expiatório, talvez possa até ser um dos maiores contributos deste The Fiscal Ship.
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Paulo M. Morais cresceu a jogar futebol de rua e a ouvir provérbios ditos pelas avós. Licenciou-se em Comunicação Social e especializou-se nas áreas do cinema, dos videojogos e da gastronomia. É autor de romances e livros de não ficção. Coleciona jogos de tabuleiro e continua a ver muitos filmes. Gosta de cozinhar, olhar o mar, ler.
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