O estatuto fiscal do residente não habitual e o regime usualmente apelidado de Golden Visa são muitas vezes referidos na mesma frase, criando a perceção de que serão programas muito semelhantes. Mas, em rigor, não o são. Nem quanto à natureza da vantagem concedida, nem face ao tipo de relação que grande parte dos seus beneficiários desenvolve com Portugal.
Nem mesmo quanto aos números que geram: só em 2022, foram concedidos mais de 16.000 estatutos de residente não habitual, contra menos de 13.000 Golden Visa emitidos em 12 anos.
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O que é um residente não habitual?
O Estatuto de Residente Não Habitual (RNH) é um regime especial que oferece, durante 10 anos, uma redução do Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (IRS), a novos residentes estrangeiros, e a cidadãos portugueses que tenham estado emigrados mais de 5 anos.
Para aceder a este regime fiscal, o novo residente tem de exercer uma atividade profissional considerada de “elevado valor acrescentado” ou ser pensionista. E preencher os requisitos de residente: que é permanecer mais de 183 dias em Portugal, e ter habitação própria ou arrendada para usar como morada habitual.
O objetivo deste incentivo é atrair profissionais qualificados em atividades de elevada importância, e beneficiários de reformas obtidas no estrangeiro.
Ou seja, a primeira coisa que desde logo é importante deixar claro é que, ao contrário do que acontece com grande parte dos cidadãos a quem foram concedidos Golden Visa, e do que a designação “residente não habitual” poderá sugerir, estas pessoas vivem em Portugal.
A segunda é que beneficiam de um enquadramento fiscal através do qual pagam uma taxa fixa de 10% sobre as pensões (que inicialmente estavam totalmente isentas), e 20% sobre os rendimentos profissionais auferidos em Portugal. E estão isentos da tributação em Portugal de rendimentos auferidos e taxados no seu país de origem, sejam estes valores resultado de trabalho dependente ou independente, de rendimento de capitais, prediais ou de mais-valias.
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A equidade fiscal e o contexto português
Em Portugal (e um pouco por todo o mundo), a tradição é de que a política fiscal tenda a promover uma redistribuição da riqueza, através da taxação progressiva de rendimentos, ou da atribuição de subsídios.
Mas isto não é necessariamente uma verdade universal. E mesmo no chamado mundo ocidental, é possível encontrarem-se algumas diferenças. Por exemplo, a tradição europeia, tem uma presença mais forte do estado-providência, e os Estados Unidos, a intervenção estatal é menos popular, face a uma maior valorização da iniciativa privada e da sua liberdade de atuação.
Como se assume que os beneficiários do estatuto do Residente Não Habitual têm rendimentos mais elevados, esta medida tende a criar uma sensação de injustiça social, pelo facto de estes novos residentes pagarem, previsivelmente, uma fatia mais pequena do seu rendimento do que residentes ditos tradicionais que aufiram rendimentos semelhantes ou inferiores.
Talvez seja pertinente recordar, para uma contextualização das crenças e convicções dos portugueses sobre estas matérias, a proposta que vem sendo defendida pela Iniciativa Liberal (IL), aquele que é considerado – no plano económico – como o mais liberal dos partidos com assento parlamentar: a aplicação de uma mesma taxa fixa aplicada a todos os contribuintes.
Esta proposta é sustentada pelo argumento segundo o qual (e concorde-se muito ou pouco com a ideia, trata-se de constatar um facto), a aplicação de uma taxa fixa a todos os contribuintes, assegura que quem recebe mais contribui mais, e que quem recebe menos paga menos. Ou seja, a bancada mais neoliberal do Parlamento defende que todos contribuam com a mesma porção do seu rendimento.
O que está em causa com o estatuto do residente não habitual é algo mais disruptivo: se a IL defende que quem ganha mais deve ser taxado na mesma razão que quem ganha menos, este regime fiscal promove que "novos residentes" com rendimentos mais elevados, descontem uma percentagem menor em sede de IRS que parte dos "antigos residentes" com rendimentos mais baixos. Sendo que quanto maior for o rendimento, maior será o benefício fiscal obtido pelo "novo contribuinte".
Para ser mais preciso, a taxação de 20% em sede de IRS dos rendimentos auferidos em Portugal, por pessoas que se presume terem rendimentos superiores à larga maioria da população, equivale a dizer que, em 2023, estes novos residentes são submetidos a uma carga fiscal inferior àquela que é aplicada a qualquer residente, não casado e sem dependentes, com um ordenado igual ou superior a 2.000€.
Como é que o RNH impacta o mercado residencial?
Segundo o Tribunal de Contas, no final de 2022 havia 74.258 residentes a usufruir deste regime fiscal, mais 16.371 que no final de 2021. Um valor superior ao número total de Golden Visa concedidos em 12 anos, e uma variação anual significativamente superior aos 10.808, 10.596 e 10.797 beneficiários a mais (face aos anos imediatamente anteriores), contabilizados em 2019, 2020 e 2021.
Recordo que a elegibilidade para este regime exige que estas pessoas, das duas uma: ou tenham um contrato de arrendamento habitacional, ou sejam proprietários de um imóvel residencial.
Dito por outras palavras, o que está em causa é um modelo de captação de investimento estrangeiro através de um regime que, basicamente, exige que as pessoas tenham casa em Portugal. O que, como é óbvio, pressiona a procura por habitação.
Só para lhe dar alguma sensibilidade aos números: segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2022 venderam-se 167.900 casas e celebraram-se 92.572 novos contratos de arrendamento em Portugal. Num cenário teórico em que todos os novos beneficiários do estatuto de residente não habitual em 2022 tivessem, ou comprado ou arrendado casa (sendo que o regime os obriga a fazer uma dessas duas coisas), o peso em cada uma das modalidades de negócio seria de 9,8% das transações e 17,7% dos arrendamentos de todo o país. E de todas as declarações que já li sobre o tema, não há uma única que pareça ter sequer consciência desta escala.
Quantos compram e quantos arrendam? E onde? Infelizmente não sabemos (mas devíamos). Mas seja qual for a distribuição, tudo indica que a conclusão seja a seguinte: em 2022 os residentes não habituais tiveram um impacto muito significativo na procura de habitação em Portugal.
Recordo ainda 3 coisas:
- Não parece provável que estes novos residentes estejam distribuídos de forma homogénea pelo território nacional; expectavelmente a sua presença deverá ser mais vincada nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, e no Algarve, onde a expressão das dificuldades no acesso à habitação já são mais evidentes;
- Recordo que estes novos residentes (na sua esmagadora maioria estrangeiros, e obrigatoriamente com domicílio fiscal em Portugal), são a evidência de que o critério do domicílio fiscal estrangeiro aplicado pelo INE, para ponderar o número de compradores de outras nacionalidades, gera uma subestimação muito significativa do seu real valor.
- Como já vimos no capítulo dedicado à procura, a pressão sobre os preços da habitação não acontece apenas através da aquisição, mas também via arrendamento. Lembra-se que, segundo o Portal Idealista, mais de 50% dos T2 anunciados para arrendamento no concelho de Lisboa custavam 2.000€ ou mais?
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E os benefícios?
O motivo pelo qual os agentes políticos entendem que vale a pena pagar este preço é porque vislumbram benefícios. E eles existem.
Desde logo porque, se estivermos efetivamente a atrair novos residentes graças a este regime, é o próprio desconto fiscal que é responsável pela captação de novos contribuintes e pela geração de nova receita. Ainda que em matéria de IRS, até 2020, isso não fosse verdade para os pensionistas, uma vez que estavam totalmente isentos.
Quando falamos sobre os vistos gold, aceito que se diga que quem com eles mais beneficia são sobretudo os promotores imobiliários que vendem os apartamentos, os agentes (como eu) que medeiam as transações, ou os advogados que asseguram a tramitação das candidaturas às autorizações de residência.
Arrendamento, contrato, duração, vigência e terminação
Mas isso não é necessariamente verdade para os residentes não habituais. Como já foi explicado anteriormente, e ao contrário do que a designação poderá sugerir, o regime fiscal obriga a que estes cidadãos residam em Portugal.
Estamos a falar de imigrantes, que à partida ficarão em Portugal pelo tempo que lhes for possível e desejável, mas que durante 10 anos beneficiarão de um incentivo adicional para se manterem por cá. Estas pessoas contribuem para a economia como os demais residentes (ou eventualmente algo mais, presumindo os seus rendimentos mais elevados): vão ao supermercado, jantam fora, usam transportes públicos e particulares, questionam-se sobre a escola mais indicada para os filhos, o ginásio que mais lhes convém, e partilham muitos outros dilemas com o resto da população.
Um dos argumentos mais comuns, é a ideia de que um regime desta natureza tem a virtude de conseguir, por via do "desconto fiscal", que uma proposta de trabalho de uma organização sedeada em Portugal, se torne financeiramente mais vantajosa para atrair alguém, com uma atividade considerada de "elevado valor acrescentado".
Isto num país que, no contexto da Europa Ocidental, ainda oferece um custo de vida atraente.
E por maioria de razão, empresas estrangeiras ponderam estabelecer-se em Portugal por esse mesmo motivo: maior capacidade de atração de talento via benefício financeiro que é, digamos assim, subsidiado pelo "desconto fiscal" aplicado pelo Estado português.
E juntar a isto os argumentos da praxe: a meteorologia amena, a estabilidade política e social (ainda que, sejamos francos, a habitação seja hoje um dos elos mais fracos desta equação), boa cobertura de internet, maior proficiência na língua inglesa que qualquer outro país do sul da Europa, etc, etc.
As questões que creio ter sentido levantar são:
- Terá sentido continuar a promover uma espécie de paraíso fiscal para reformas elevadas? Este tema já valeu, inclusive, pequenos incidentes diplomáticos com Finlândia e Suécia, que não renovaram as respetivas convenções celebradas com Portugal, para evitar a dupla tributação, acordos comuns entre países das mais variadas geografias.
- Será mesmo verdade, como costumam afirmar os defensores deste regime, que estas pessoas não teriam escolhido viver em Portugal se não fosse este regime fiscal? Ou ter-se-ão limitado a aproveitar uma vantagem acrescida, que lhes é oferecida pelo país onde escolheram viver? E se assim for, estará Portugal a desperdiçar receita fiscal, oferecendo um benefício que não foi determinante para a fixação destes novos residentes?
Será que o regime faz mesmo a diferença?
É o estatuto do residente não habitual per si que atrai novos residentes? Ou será que parte destes novos contribuintes se limitaram a tirar partido de um benefício adicional, que não terá sido decisivo para escolherem Portugal?
Vejamos o exemplo tornado público de um cidadão estrangeiro que, à chegada a Portugal, solicitou o estatuto de residente não habitual: Julen Lopetegui, o antigo treinador do Futebol Clube do Porto (FCP).
O treinador e ex-futebolista espanhol ter-se-á inscrito como residente não habitual, e esse pedido terá sido deferido num primeiro momento. Segundo o Jornal Expresso, "ao longo de três anos, entre 2014 e 2016, o treinador de futebol pagou apenas uma taxa de 20% de IRS sobre os rendimentos que recebeu do Futebol Clube do Porto, mas no final de 2018 viu-se confrontado com uma liquidação adicional do Fisco, exigindo-lhe que pagasse IRS de acordo com as regras gerais. Em causa estava uma diferença de mais 800 mil euros de imposto".
Deste artigo retiro duas convicções:
- Que, se em algum momento Julen Lopetegui reuniu chances de ser um residente não habitual (não desvalorizando o contributo do futebol para a economia nacional), parece-me que o leque de funções consideradas de "elevado valor acrescentado" poderia ser repensado;
- O estatuto do residente não habitual não só não terá sido decisivo para a decisão deste cidadão espanhol como, muito provavelmente, o treinador nem teria conhecimento do regime quando aceitou a proposta do FCP.
Ser beneficiário do RNH obriga a residir em Portugal. Em muitos casos estaremos a falar de decisões que afetam cônjuges e descendentes. Ou seja, haverá um universo de prós e contras a percorrer antes de ser tomada uma decisão.
Com isto, quero apenas dizer que tenho dúvidas se, como alguns sugerem, estejamos mesmo a falar de pessoas que, não fosse este regime, nunca teriam escolhido Portugal para viver. Ou se, pelo contrário, estarão a usufruir do desconto fiscal novos residentes cuja decisão de mudar para Portugal se terá prendido com outros critérios.
Sem prejuízo do RNH poder, mesmo sem ser decisivo, contribuir para uma família se fixar em Portugal. Ou para que esta não abandone o país quando surgir uma oportunidade interessante para o fazer.
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O preço das decisões
A lei do Orçamento do Estado de 2009, permitiu a criação de um regime fiscal para atrair não residentes, com elevado património, rendimentos ou qualificações, de modo a que estabelecessem o seu domicílio fiscal em Portugal.
Muito mudou nos últimos 15 anos, quanto à capacidade do país em captar investimento estrangeiro e a atenção do mundo. E se é verdade que o programa já conheceu alterações, parece ser igualmente verdade que os desenvolvimentos dos últimos anos podem sugerir algumas mais.
Como já referi em relação aos vistos gold, este tipo de programas deve ser monitorizado regularmente, para que o Estado possa entender se o desígnio da sua criação está a ser atingido. E a que preço isso estará a acontecer. Ou seja, que externalidades negativas poderá estar a gerar. E melhor ou pior, parece ser isso que o Governo está a tentar fazer.
Habitação: Preços, rendas, juros e rendimentos
Segundo este artigo do Expresso, de Janeiro de 2020, do total de benificiários do estatuto, apenas "7% eram trabalhadores altamente qualificados". O que, na altura, nos deixava 93% de pensionistas a gerar 0 euros em receita de IRS, uma vez que só em 2020 é que foi introduzida a taxação de 10% sobre as reformas.
De todas as formas, parece-me precipitado acabar com o regime. Aliás, terminar em absoluto com regimes mediáticos de um dia para o outro, soa-me desde logo a má política em matéria de marketing estatal.
O que não significa que não devamos ter presente que um dos requisitos deste regime gera pressão sobre os preços da habitação. E os números são claros: só em 2022 foram mais de 16.000 beneficiários a ter de comprar ou arrendar casa para assegurar o estatuto.
E quantos destes novos residentes escolheram viver em Portugal pelo contributo decisivo deste benefício? Porque se foram mesmo a maioria, temos de reconhecer que o RNH per si traz (ainda) mais desafios à habitação. E se for esse o caso, será que devemos reduzir/maximizar o desconto fiscal em função do local de residência do beneficiário, para mitigar o agravamento dos custos de habitação em áreas geográficas de maior pressão?
Em contrapartida, devemos aceitar que há um preço a pagar por atrair talento em sectores considerados estratégicos? E que o interesse público acabará por sair beneficiado? Mas será razoável falar em interesse público sem dar prioridade às carências habitacionais? Ou seria viável estabelecer que a receita fiscal gerada por um programa como o RNH, pudesse ser aplicada no financiamento do parque habitacional público?
E será que aquilo que o Expresso publicou em 2020 continua a ser válido em 2023? E que o RNH tem servido, muito mais, como mecanismo de atração de pensionistas do que de talento profissional? E que, assumindo que estes pensionistas não têm necessidades muito diferentes das dos demais, boa parte deles terá escolhido o Algarve para viver? Se leu o primeiro artigo deste Especial Habitação, sobre demografia, diversidade e conjugalidade, talvez se lembre que é lá que estão seis dos 10 municípios mais caros para comprar casa em Portugal...
Por outro lado, perante este cenário hipotético, terá sentido estreitar o leque de profissões? Talvez nos baste excluir os pensionistas da equação. Ou se, assumindo que são os problemas de acesso à habitação que motivam o Governo, limitar o benefício fiscal aos pensionistas que escolham residir em municípios de baixa densidade?
Há uma coisa com a qual estamos, seguramente, todos de acordo: em 2009 o legislador não tinha a capacidade de prever os preços da habitação 10 anos depois. Precisamos de mais dados. Para assegurar que levamos a cabo processos de decisão mais informados. Ou para, não menos importante, podermos avaliar as medidas do Governo.
Este artigo não pretende convencer os leitores a expressarem mais simpatia ou antipatia por este regime. Mas convidá-los a pensar no tema de forma mais ampla.
E a questionar as declarações categóricas daqueles para quem "é imperativo terminar com o estatuto", ou "é uma estupidez acabar-se com os RNH". Porque mais vezes do que as que seriam desejáveis, o discurso daqueles a quem a comunicação social dá palco não parece estar muito preocupado em discutir todos os impactos de uma medida, e em perceber como é que estes se alinham com o interesse público.
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Consultor imobiliário na KW e especialista no mercado residencial da Grande Lisboa, é autor do blogue A House in Lisbon e da série Minuto Imobiliário. Nascido em Lisboa e formado em Sociologia, foi gestor no BES, assinou o blogue O Alfaiate Lisboeta, e foi cronista no Dinheiro Vivo, Expresso, Metro e GQ.
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